sexta-feira, 13 de novembro de 2015

HERÓI POR UM DIA

(ficção sobre factos reais)

Nunca em meses de comissão vacilara sobre o que me aconteceria se tivesse ido para outra especialidade ou ramo militar, se a minha passagem por África seria diferente, ou se me arrependeria de alguma coisa que tivesse feito, até àquele dia.
OPCs Costa e Aco - foto de JFMA
Estava novamente em Gago Coutinho com o Costa, a actividade militar atingia o zénite de um lado e outro da barricada os contendores procuravam infligir os maiores danos possíveis, e a guerra travava-se cada vez mais nas Lundas, Moxico e Cuando Cubango. Tinham-me pedido para tentar saber quando chegava a coluna do Luso, onde vinha um camião da FAP, com materiais para as obras do novo hangar para os Pumas.
Levantara-me às 05h30 zulo, mas a nossa rede estava "morta" (traduzindo) ainda ninguém respondia nas frequências.Na coluna vinha também pessoal do Exército para efectuar a rotação do Batalhão, ligara o emissor/receptor Racal TR-28, de origem Sul Africana que tinha as frequências do exército e as comuns aos três ramos militares, e fui fazendo buscas sucessivas até sintonizar o posto de rádio dos vizinhos do lado, a "diarreia verbal" do operador de serviço levou-me a baixar o volume e a ir pôr a frigideira ao lume para preparar o mata bicho composto de bife de songo com pão de véspera e Nocais frescas, lá pelo meio da manhã chegaria o "regulamentar" café aguado com leite em pó e uma carcaça com manteiga mais ou menos rançosa, trazidos pelo "Zé Manel", o nosso assalariado.
Passou o tempo ouvi alguém a chamar repetidamente por Coutinho no TR-28, resolvi responder mesmo sabendo que não era comigo, uma vez que aquela era uma frequência só utilizada pelo Exército, e confirmaram-se as minhas suspeitas, era a coluna. Informei-os , que se necessitassem de ajuda estaria à escuta e de que iria passar a informação ao Batalhão, assentei o indicativo fiz o telefonema e esqueci a coluna.
Saí do P.R.(posto de rádio) e fui espreitar a placa, a actividade àquela hora já era frenética,
Posto de rádio - foto de Rui Pires
os "metralhas" havia pessoal a dobrar para um "Siroco" que estava marcado para daí a dois dias, municiavam os quatro T-6, que iriam efectuar RVIS na área do destacamento, os mecânicos abasteciam e inspecionavam tudo. Chamei-lhes a atenção e manifestei a disponibilidade para testar os rádios e voltei para o meu "ninho". 

Passados minutos respondi aos vários contactos dos mecânicos para testar as frequências de aproximação dos aviões e héli, já se ouvia entretanto a betoneira a trabalhar no estaleiro da obra e resolvi ir avisar o Pita Grós do contacto, quando voltei subi os níveis das escutas e subitamente, o TR-28 começou a fervilhar com múltiplas entradas de emissores no ar, gente aos berros e a pedir socorro, num caos total, apercebi-me imediatamente de que a coluna estava debaixo de fogo, chamei pelo indicativo que obtivera e confirmava-se a minha suspeita, (estavam debaixo de fogo de morteiros e armas ligeiras, havia já dezenas de feridos e possivelmente mortos, a coluna progredia espalhada por quilómetros de extensão e quando uma das viaturas saiu da estrada para passarem a vau um pequeno rio, talvez por ser mais radical, e foi seguida por outras, uma delas atascou obrigando à imobilização das restantes, tinha sido por essas que começaram a cair os morteiros). 
Avisei o posto de rádio do Batalhão, e fui acordar os pilotos, aquilo ia sobrar para nós de certeza, imediatamente foi pedida autorização ao Secarleste, para descolarem dois T-6, que pudessem dar cobertura à vertical da coluna e obterem mais informações, quer sobre a necessidade de outros meios aéreos para eventuais evacuações que fossem necessárias, quer sobre o nosso transporte.
Picada Gago Cotinho/Ninda
- foto Armando Carvalho
Do Luso ZML (Zona Militar Leste) informaram que desconheciam qualquer ataque à coluna, do Secarleste e após confirmação nossa foi autorizada a descolagem dos T-6, que entretanto já estavam abastecidos e municiados, e do Héli, para a primeira das várias evacuações. 
Agora só quando eles estivessem à vertical é que perceberíamos a verdadeira dimensão do ataque e dos meios necessários. Liguei novamente para o Batalhão, para me porem em contacto com um dos médicos, para que me dissessem do que precisavam numa situação de excepção como aquela e fui aguardando o reporte dos T-6.
Entretanto, toda a gente se juntara no hangar a ouvir o desenrolar dos acontecimentos, através da instalação normalmente usada para ouvir música, quando chegou um dos médicos, para saber se já sabíamos alguma coisa, chamaram por mim, fui directo e conciso, havia um grande número de feridos e possivelmente mortos, o que é que eles precisavam que não tivessem no hospital, uma vez que viriam de certeza do Luso mais meios aéreos para as evacuações. 

Ele olhou-me com cara de espanto e respondeu: e como é que eu vou pedir seja o que for se ninguém sabe qual a situação real, e mesmo sabendo do que preciso, leva semanas a chegar cá! 
Respondi-lhe: estamos a perder tempo, escreva-me em maiúsculas num papel o que precisa de forma que eu consiga ler, e em cinco minutos no máximo, a lista está a caminho da ZML. Ele nem hesitou, sentou-se à mesa e passados minutos tinha uma lista de material que enviei "sob reserva" para a ZML, com informação ao Secarleste.
Finalmente dos T-6 à vertical da coluna, veio a confirmação do que menos queríamos
T6 á vertical de coluna
-foto de Gonçalo Carvalho
ouvir, (os soldados que vinham efectuar a rendição, com pouco mais de uma 
semana de comissão, vinham em tronco nu em cima dos transportes a apanhar sol, não vinham de armas em prontidão, e alguns nem sequer saltaram das viaturas, morreram sentados como vinham, existiam várias viaturas a arder junto duma ponte, tinha sido a cabeça da coluna que tinha sido atingida, como andava mais depressa, os veículos mais pesados tinham ficado para trás, como era o caso do nosso camião que nada sofrera, limitaram-se a sair da estrada e a procurarem abrigo na mata), nenhum dos pilotos conseguia contacto com o chão, nem se via qualquer actividade que indicasse para onde fugiram os atacantes, mas uma coisa era certa havia uma quantidade anormal de feridos sendo necessário outro héli, e um PV-2 ou mesmo um DC-3 para transportar os mais graves para o Luso.
Voltei a chamar a coluna indiquei-lhes o canal com que poderiam falar com os "milhafres" que tinham à vertical, e transmiti nova mensagem ZULO para o Secarleste, dando a localização exacta do ataque e confirmando o reforço de meios para evacuação dos feridos, primeiro para Coutinho e depois para o Luso, o héli de alerta ia descolar directamente para o local e um PV-2 com parte do material pedido iria descolar também, assim que fosse reunido o restante, um DC-3 viria fazer a evacuação final.
Com a chegada dos feridos, todos nós nos mobilizáramos para dispor combustível na placa, e para apoiar os mecânicos no que fosse necessário, a adrenalina estava no seu pico máximo, acabei por dar por mim, como toda a gente, a meter os braços por baixo de corpos mutilados, a apoiar membros quase decepados, a conter as entranhas de corpos que não faziam sentido, tudo sem me importar com o sangue e outros fluidos e sem perceber o porquê daquela barbárie, a maior parte deles nem barba tinha, recém desembarcados, nem ao destino tinham chegado e já tinham infelizmente muito que contar. 
Eram miúdos como eu, e os seus olhares de medo e espanto pelo que lhes tinha acontecido dizia tudo e não explicava nada; a triagem era feita na placa, os que tinham tratamento, seguiam em macas improvisadas para o hospital, os outros eram encharcados em morfina e ficavam logo ali, num canto da placa, gemendo e implorando que os salvassem. 
Ao passar junto de um deles, ouvi chamar pelo meu nome, olhei e vi um Furriel chamado Henriques, que tinha andado comigo a estudar, cheguei-me a ele e ouvi o seu lamento, (não me deixem morrer, eu prometi à minha mãe que voltava), enchi-me de coragem e confirmei-lhe tem calma pá ainda não é desta que vais morrer, isso são só uns arranhões, segurei-lhe as mãos e senti que os seus dedos pouco a pouco faziam cada vez menos força nos meus, chamei um dos maqueiros e ele de passagem confirmou-me o que suspeitava, mas recusava aceitar, não posso perder tempo com esses, há outros que ainda se podem salvar, fiquei ali, com as mãos dele nas minhas, até chegarem os menos sortudos, transportados em sacos pretos.
Uma raiva incontida toldou-me a visão, e um véu colérico, vermelho da cor do pó e do sangue já seco nas poças dos que tombaram, cobriu-me os olhos e passei-me completamente, cruzei-lhe os braços sobre o tronco e de forma solene mas inconsciente prometi que vingaria a sua morte. 
Fora de mim corri à camarata com as lágrimas a sulcarem-me o rosto, quando voltei, de camuflado e armado até aos dentes, toda a gente me olhou espantada, eu que era o menos guerreiro do destacamento, exigi que me deixassem ir no primeiro héli com os militares que fariam o corte de retirada aos cabrões, que tinham cobardemente efectuado o ataque à coluna. 
Felizmente que me chamaram à razão e ninguém me deixou ir, naquele dia teria tomado com certeza as piores decisões de que me arrependeria possivelmente para o resto da minha vida.
No final do alvoroço, o Secarleste, entretanto chegado, mandou reunir o pessoal no hangar, e dirigindo-se ao Alferes Piloto que comandava o destacamento perguntou: como é que nós tínhamos conseguido o milagre de ter pedido os apoios e meios praticamente na hora que o ataque aconteceu, evitando a morte de muitos dos feridos? O Alferes, que entre nós era carinhosamente conhecido como o mais sorna de todos, mas um piloto e sobretudo um homem excepcional, retorquiu, é para que eles saibam que enquanto eu estiver no comando do aeródromo a guerra é para ser levada a sério. 
Toda a gente se riu com a saída dele, mas respondendo directamente ao Secarleste, apontando para os dois OPC'S informou: o mérito é deles, foram eles que avisaram até o Exército, como o conseguiram, não sei mas eles foram os heróis. O Costa, respondeu, eu não fiz nada nem era eu que estava de serviço, o herói é ele. Meti-me na conversa para dizer: que o dia de hoje nos sirva a todos de lição, quando acham que eu sou arrogante a correr com os que invadem um espaço que tem de ser de trabalho e atenção constante e não de conversa e distração, faço-o para que quando alguém, no ar ou em terra, peça ajuda, tenha a certeza que é ouvido e serão tomadas as decisões necessárias à resolução de qualquer situação.
Grande actividade no AR 
- foto de Afonso Palma
No dia seguinte, antecipado o Siroco, chegaram um Nordatlas com os Paras, os Alouette III, e os Pumas, nossos e dos "Primos", que em cooperação com os Flechas e Exército, levaram a cabo a maior e mais bem sucedida operação a que se assistiu na zona de Gago Coutinho, com a destruição de um vasto complexo de apoios, paióis, um hospital de campanha, vários abrigos, a libertação de elementos da população civil utilizados como transportadores e pisteiros, entre os detidos um alto cargo referenciado como dissidente do MPLA e que posteriormente foi utilizado na contra propaganda, numa Rádio que transmitia para o interior e exterior do território, diverso armamento, incluindo uma curiosa mini antiaérea, a destruição de diversas lavras e pirogas, mas sobretudo com esta operação começou o declínio da capacidade do MPLA, de agir como até ali, tomando a iniciativa.
Acabado o destacamento voltei ao Luso, ao regressar ao posto de rádio, mostraram-me uma mensagem originada conjuntamente pela ZML e Secarleste, propondo ao Comandante Militar da Província o louvor da guarnição do AR de Gago Coutinho, pela determinação atempada na resposta ao ataque à coluna Luso-Gago Coutinho, e no exemplar desempenho na coordenação das posteriores operações de evacuação de todos os feridos, de retaliação, limpeza e desactivação dos meios de apoio na zona de acção do destacamento.

Gago Coutinho, 1972.

OPC ACO 

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