A cidade do Luso em 1970 - foto de Gonçalo de Carvalho |
Já tinha meses de comissão, quando fui colocado no Secarleste no Luso, chegado ao destacamento, fiquei deveras preocupado quando o (Sousa) meu antecessor me mostrou uma chave de porta e me informou que caso eu quisesse ir viver para a casa que eles ocupavam na sanzala, era só pedir ao condutor que me levasse e ele me deixaria no local.
Nas passagens anteriores pelo Luso a caminho dos "hotéis" de Neriquinha e do Cazombo, dormira num cubículo nas traseiras do Luso Hotel, sem luz, sanitários, janelas, mas era central e seguro, por isso perguntei o porquê da casa na sanzala e ele informou-me que não haviam casernas, nem refeitório nem quartel no Luso, e como o quarto na cidade estava ocupado era cada um por si, podia dormir no posto de rádio, no hangar ou mesmo dentro de algum avião, era comigo, ou então podia ir para a casa na sanzala e ter "tudo num só sítio" (cama, mesa, roupa lavada e o resto) com o aumento de pessoal, teriam de construir casernas, cozinhas refeitório e tudo o que era normal numa Base, até lá cada um desenrascava-se como podia, mas a decisão era minha.
Posto de rádio - foto de Rui Pires |
Antes da criação do Secarleste, o posto de rádio tinha uma guarnição para cumprir um horário de 12 horas comum aos destacamentos, das 06:00 às 18:00 Zulo, com o horário a passar para 24:00 horas, era inevitável o aumento de pessoal. Até ali os OPC'S, dormiam num cubículo nas traseiras do Luso Hotel, agora era fisicamente impossível albergar mais operadores num espaço tão pequeno.
O Luso era uma cidade arejada, onde a guerra era mitigada por uma população civil branca em número suficiente para lhe dar o ar de paz e progresso, tão ao gosto do "regime" mas sobretudo de normalidade que se sobrepunha ao que se passava para além dos chamados "limites urbanos de segurança" , pela concentração de quartéis dos três ramos das Forças Armadas, mesmo as sanzalas limítrofes eram relativamente seguras para albergarem os malucos dos OPC'S que resolveram ir viver no seu interior.
Aceitei a chave com o mesmo sentimento de inevitabilidade que um condenado aceita a farda de riscas o cobertor e os lençóis para a enxerga, e no fim do dia lá segui pouco convencido no jeep com os outros dois habitantes da casa situada relativamente perto do aeroporto, numa das primeiras ruas de terra batida à esquerda de quem seguia para a cidade e em frente de um dos quartéis do exército.
Habitações típicas da sanzala - foto de Rui Neves |
Era uma casa de adobe rebocado e pintada com um branco desbotado pelo sol e pó inclementes, o telhado de chapas de zinco ferrugentas, deixava passar o calor de dia e o frio à noite, vários buracos de pregos de utilizações anteriores, deixavam atravessar os raios de luz que desenhavam no pó sempre presente, riscos e formas luminosas, contrastando com o escuro da única divisão, os três colchões assentes em tijolos, eram os únicos vestígios de mobília e ocupavam praticamente todo o espaço, não existiam janelas, e a porta era o único adorno que descontinuava as paredes irregulares, o tecto baixo, aumentava a sensação claustrofóbica provocada pela ausência de espaço e aumentava o calor infernal, devido aos cães e outros bichos mais ou menos autóctones, de quatro ou duas patas, era desaconselhável mante-la aberta.
Se já tinha dúvidas antes de ali chegar, imediatamente me arrependi de para ali ter ido, era um tecto para dormir e pouco mais, não havia luz, água, sanitários, nem segurança para deixar ali qualquer coisa de valor monetário ou sentimental, antes dormir no chão da cifra ou do posto de rádio.
Mas foi ali que passei os meus primeiros tempos, quando estava de folga, corria para a cidade na busca de um outro sítio onde me aboletar, que fosse pelo menos seguro o suficiente para não andar continuamente com a mochila às costas com os parcos haveres de que me não separava na certeza que se os deixasse ao acaso nunca mais os veria.
A renda era paga ao "Soba" e a roupa lavada pelas suas mulheres, e era ele que mantinha a "segurança" do local e o respeito que nos era devido na nossa ausência. Aos domingos éramos convidados para o almoço, debaixo de uma latada, mas nunca me senti tentado a comer o peixe seco ou o funje de frango do cardápio, o máximo que me fazia socializar com eles eram uns copos de hidromel ao pôr-do-sol e dois dedos de conversa de "conveniência" com as jovens "filhas" do soba pela noite dentro.
Às horas do transporte para a cidade, ou para as refeições, eram sintomáticos os olhares de reprovação dos que nos viam sair no meio da sanzala para irmos dormir ou a apanhar o transporte para o aeródromo de manhã para irmos trabalhar.
O Adjunto do Comando tentou por várias vezes junto do nosso Sargento, fazer pressão para que fôssemos viver para outro sítio mais digno, ao que sempre contrapusemos o argumento de que a FAP, tinha a obrigação de nos dar cama roupa e comida, e sempre nos recusámos a ir viver para uma camarata de um qualquer quartel do Exército.
Na República dos Saltimbancos, eu, Soares, Mósca e Martins |
O tempo passou e vim a saber da existência da República dos Saltimbancos e a convite do MMA Mósca, eu e o OPC Martins, visitámos as instalações, a evidência do que fomos encontrar mais nos mobilizaram para convencer os restantes OPC'S a alugar-mos uma casa ou vivenda para concretizarmos o que nos parecia mais lógico, termos um local digno, e com condições para podermos deixar os haveres, não só quando íamos para o serviço, mas sobretudo quando íamos para destacamento.
Hoje passados 44 anos, ainda me espanto como nestas condições miseráveis, o serviço era mantido 24 horas por dia, com o máximo da eficiência, sem que os sucessivos "recados" mandados para Henrique de Carvalho alertando para a ausência de condições mínimas de alojamento e de segurança dos operadores de comunicações, surtissem qualquer efeito ou tivessem eco nas chefias da estação directora da rede de comunicações do Leste de Angola, e só quando da chegada do T.C. Sachetti, que exigiu que cada militar tivesse um local certo onde pudesse ser localizado quando necessário, até que as futuras instalações militares estivessem construídas, é que pela primeira vez alguém nos ouviu, nos deu razão e resolveu a situação, atribuindo-nos um subsídio provisório para a renda e garantindo o pagamento de forma a que pudéssemos assinar um contrato legal com o senhorio do moderno andar que viria a ser a sede da República dos Tá-Ri-Rá-Ris no Luso.
A República dos TA-Ri-Ra-Ris - foto de JFMA |
OPC ACO
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