sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

RÁDIO FAROL

Naturais abastecendo de água no rádio farol
No dia ”não sei quantos” (só sei que era 6ª feira) de Março de 1971, aterrei na pista do AB4, no Leste de Angola, após uma permanência em Luanda de alguns dias, á espera de avião. 
Após as apresentações da praxe, fui de imediato enfiado dentro de um jeep e transportado até ao rádio farol. Uma vez aí, foi-me dito que era ali que eu passaria a fazer serviço de escala, sendo o meu próximo serviço já no Domingo seguinte. 
Foi-me feita uma explicação sumária do que tinha a fazer, mas sem grandes pormenores já que, segundo o meu cicerone, um electricista velhinho de quem já não lembro o nome, “os pretos tratavam de tudo”. Esse mesmo cicerone fez questão de me chamar a atenção, para as marcas de balas existentes na madeira do tecto, e que segundo ele, tinha sido uma rajada de metralhadora, disparada na última vez que o rádio farol tinha sido atacado. 
No Domingo seguinte, às 9h00 da manhã, lá vai o meu bom do Raimundo para o rádio farol, mais encolhido que nem um rato dentro de uma ratoeira. O dia até que nem se passou mal; aquilo era tudo novo para mim, e como pude verificar “os pretos (putos) tratavam de tudo”, punham o gerador a trabalhar, paravam o gerador, metiam gasóleo, tiravam os bidões vazios, metiam os cheios, enfim, a mim restava-me vê-los trabalhar. 
E o dia passou-se e chegou a noite. 
Os putos desapareceram e eu, de acordo com as ordens recebidas, telefonei para a torre a saber se ainda havia aviões no ar. Como a resposta foi negativa tive de parar o gerador, e ai fiquei eu, sozinho, algures no Leste de Angola, cercado de mata e de capim, e alumiado apenas pela luz bruxuleante de um candeeiro a “pitrólio”, tentando ler qualquer coisa para ajudar a passar o tempo, já que deitar e dormir era coisa que estava fora de questão. 
No sótão do casebre vivia uma colónia de morcegos, que logo que se pôs o sol, entrou em actividade, fazendo uma enorme barulheira, entrando e saindo pelos buracos que davam acesso ao mesmo, e também ratazanas que entravam para dentro do edifício e roubavam tudo o que apanhavam. 
Passado algum tempo comecei a ouvir uma grande “batucada”, o que à partida deveria ser uma boa experiência, pois tratava-se da primeira batucada genuína que eu ouvia em África. Mas a mim, aquela batucada soava-me a “tambores de guerra” e só serviu para aumentar o meu medo. Não sei quanto tempo durou a festa, só sei que depois do batuque terminar, comecei a ouvir barulhos na parte exterior do edifício. Falas e risos de gente que andava no exterior. O meu coração parecia não caber dentro da respectiva caixa. Sentado numa cadeira de fórmica, com a metralhadora FBP enclavinhada nas mãos, olhava para o tecto e via as marcas de balas a assinalar “a última vez que o rádio farol foi atacado”. 
- Estou perdido, é hoje que eu morro aqui, pensava eu com os meu botões. Mas o pior ainda estava para vir. Os meus visitantes, acharam maneira de se empoleirar nuns portões velhos de ferro que estavam encostados à parede na parte de trás do edifício e, como o edifício tinha na parte superior, uma abertura a todo o comprimento, preenchido com ripas de madeira em cruz, para ventilação, puseram-se a acender fósforos e a deitá-los para dentro de casa. Sentado na minha cadeira, eu via os seus olhos e os seus dentes brilharem à luz dos fósforos que iam acendendo. 
Depois, tal como chegaram, partiram, e eu fiquei ali toda a noite, sentado na cadeirinha, à espera que se fizesse de dia. 
Quando cheguei ao aeródromo e contei o sucedido, todos se riram de mim, e foi então que me disseram que aquilo era uma praxe que os pretos faziam sempre que chegava um maçarico ao rádio farol. Pensei então que eles eram muito corajosos e tinham tido muita sorte, pois eu estive muito tentado a por o dedo no gatilho. 
Depois deste incidente nunca mais tive problemas no rádio farol. Eram 24 horas passadas no meio do capim, convivendo com os naturais que vinham pedir água ou gasóleo, com pouco mais que nada para fazer, o que nos dava bastante tempo para a leitura, para por a correspondência em dia e também para a reflexão. 

Um dia escrevi lá este poema: 
Rádio farol, desterro e solidão! 
E o barulho de um motor roncando. 
E quando à noite, os ratos vão ratando… 
O resto é silêncio e escuridão. 
As pretas que vêem pedir água, 
Chegam à porta,…. 
Falam em Quiôco, 
Na minha face há um sorriso louco, 
Mas cá no fundo, somente existe a mágoa. 
Mágoa pelo velho negro, que à tardinha, 
Sai do capim, como uma cobra esguia. 
E a medo vem para mim, falando de mansinho 
-“Moio, branco bom, mi dá gasóleo p’rá minha mentolia”. 
Mágoa também por mim, aqui perdido…. 
Algures no Leste de Angola sem ter fim. 
Mágoa sim, por mim, aqui perdido! 
No meio de uma guerra sem sentido. 
Raimundo á conversa com habitantes da sanzala próxima do rádio farol


Texto e Poesia de: Filipe Raimundo

1 comentário:

  1. À distancia de 50 anos, como este poema e texto do camarada Filipe Raimundo me faz lembrar os textos e poemas que escrevi do outro lado de Àfrica, no norte de Moçambique (A.B.6-Nova Freixo-Niassa-Moçambique).Nós todos iguais, jovens, sem formação política, para ali enviados para cumprir objectivos que em nada, nos diziam respeito. Os negros residentes dessas áreas interiores, também pouco sabiam de política, davam-se bem connosco e apenas pretendiam usufruir de algo que lhes pudéssemos proporcionar de forma a minorarem as suas precaridades. Tempos difíceis que apesar de tudo deixaram saudades creio que acima de tudo pelo facto de lá termos deixado desperdiçados dois anos da nossa juventude. Abraço companheiros. Simão Pena.

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