quinta-feira, 11 de agosto de 2022

QUANDO MANCEBO NA OTA


Memórias de um passado saudoso

Recuamos a Maio de 1969, naquela época em que éramos mancebos, “teen age”, idade irreverente, Beatles, Rock, movimentação estudantil, guerras coloniais...
Alistado em 12 de Maio e incorporado em 21 do mesmo mês com o número de ordem 683 assim, percorro o caminho da Ota até 1 de Maio de 1970, para prosseguir a minha luta por mais cinco anos por terras Açorianas e Angolanas, separado dos meus 23 colegas de curso, por longos e imensos anos...
Nesta minha primeira parte de narração descreverei as vivências longínquas de 1969 depois, na segunda a publicar posteriormente, contarei as emoções dum reencontro que teve evidência em 23 de Maio de 2009 - precisamente na BA 2 - com quatro décadas de separação e, com muito esforço por encontrar o paradeiro de cada um, num percurso de pesquisa que demorou dois anos e em busca por todo o Mundo.
Parto de casa na madrugada de 21 de Maio de 1969, de comboio, com destino a Lisboa e para me apresentar nas delegações da FAP, após ter sido chumbado em finais de 1968, nos testes para a pilotagem.
De imediato, sigo de autocarro para a Ota, juntamente com outros companheiros e, no mesmo banco, deparo-me com um companheiro com o qual travo conversa.
Rosis, qual o curso que desejas tirar? Circulação Aérea... Também eu, já que chumbei nos testes para pilotagem. Certezas?!... Não havia nenhumas...
Recruta severa com instrutores como o Ten. Dias e Alf. José Cid. Passagens por canais de esgoto no fundo das pistas, caminhadas por terras inóspitas no longo verão desse ano, percursos pelo rio da Ota, noitadas de marcha – um horror de tropelias, atitude firmada pela tropa para nos tornarem adultos...


Tivemos uma das piores recrutas pois, estavam a preparar um longo documentário nesta fase, para apresentarem como acto de bravura, nos ecrãs do cinema.
Quem não roubou uns cachos de uvas pelas quintas vizinhas?
Para nos livrarem do corte de fins de semana, valeu-nos o tio (Brigadeiro) do Charolês. Sempre haviam cunhas!...
Os reforços surgiam em número para nos descontrolarem o sono. Faziam-se junto ás instalações dos Sargentos, paióis, pistas, junto à Torre de Controlo, padaria, etc, etc...
Na padaria, montei uma artimanha para o meu substituto Foncheca. Maliciosamente, coloquei a tampa da arca de forma que quando se sentasse, caísse no fundo. Não caiu logo. Deixou-me seguir a rota da camarata para iniciar o meu sono quando, ao longe, ouvi um enorme estrondo. Caiu fundo e, por todos estes anos, mantenho um sorriso de franca malvadez...
Vamos para a parada, travamos o combate de boxe e, a mim, calha-me o Vinhas, o doido varrido.


Os meses passam sem que ande de avião - sim, estou na Força Aérea e, com tantos aviões... Interrogo um outro colega, Bada-Bada, e, ele promete fazer-me voar. Sócio dum aeroclube nas Beiras, mete influências a um comandante da TAP e, num fim de semana parto para o aeródromo de Viseu para fazer o meu baptismo de voo numa Auster. Sensacional a aventura! Tinha o meu primeiro voo no papo.
O Hércules dormia com a arma por debaixo da cabeceira, prelúdio duma doença que se estava a avizinhar. Percursor duma rádio pirata, mais parecia o engenhocas “pardal”.
O Papa-léguas propôs-se casar, ainda na Ota. Altura em que eu começava a namorar... Marchava com passada longa daí, o Papa-léguas.
O Pinóquio, rapaz pacato, oriundo de Pinhel, fazia parelha com um colega da Guarda. Dois irmãos não se dariam tão bem ao longo da vida...
O Lapaduços, companheiro de camarata, raramente se deitava sóbrio. Com quinta em Alenquer, matava a sede a toda a Secção, nas adegas do avô. Endiabrado, aluno que não se via a estudar, noctívago. Passou à tangente, na última posição.
Outros, perfazendo os 23, tais como o Delta, Gordo, Clávulas, Bispo, Pipas, Mike, Mil, Patrik, Romeu e Selva ... faziam por cumprir o seu caminho nestes meses iniciais da Ota.
Lembro-me de cada um, tanto na imagem, na voz como, nas acções tidas na altura e, se hoje ainda mantenho o bigode, foi para imitar o Bigodes que já o usava em conformidade com o do Dr. Jivago.
Para o Tex, vem a recordação de lhe ter partido uma bilha cheia de água, que ele segurava pela asa e, que nos atormentava em molhar na caserna.
O Raf, rapaz calado, estudioso e, por fim, o Salteador, o único eliminado da conjura, por namoriscar maliciosamente a secretária do Gen. SP!..
Todos fizemos parte do célebre campo de concentração, malhados na eira de cimento, a comer a sopa feita no caldeirão do lixo e, os pães rijos de vários dias.
E o cinema, sala tão grande e que eu já tinha esquecido!... Parada, igreja, paióis, turbinas que era o terror dos reforços à noite...
E as deslocações para a Ota após os curtos fins de semana?!
Para quem vinha do Norte, tínhamos a “Ponderosa”, Bombas das Marés, o monte “Chapéu de Coco”, as meninas da Espinheira e, o velho café da aldeia da Ota.
Cortávamos para a recta final que nos dirigia para a Porta de Armas e, logo no início, localizava-se outra Bomba de gasolina.
Recta infinda que nos conduzia ao martírio de mais uma, várias semanas de loucura.
Chega o primeiro de Maio de 1970, terminámos os cursos e, nesta altura, seguimos outros rumos - rumos de separação quase eterna – não fosse eu, com outro companheiro, procurarmos a pista de cada um.
Nesta descrição, que muito se alongou, vamos deixar os companheiros do meu curso a hibernar nas várias Unidades, espalhadas pelo Continente e Açores. À posteriori, em Angola (6); Moçambique (14); Guiné (1); Continente (2) e, (1) eliminado no curso.
A seguir, noutra maré, retratarei o reencontro dos “Asas”, em 23 de Maio do ano em curso, na Ota, nos fugidos quarenta anos.
Lágrimas de saudades!... agruras para alguns familiares já enlutados!...

Por: Vitor Oliveira


1 comentário:

  1. Belíssimo relato da nossa recruta e curso na Ota. Obrigado Vitor Oliveira.

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