quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A AERO TOURADA

Avro 504K da Escola de Aviação Militar
Não. Não é o nome de uma nova companhia aérea, como se poderia depreender do prefixo "aero", mas se as coisas tivessem corrido um pouco melhor talvez pudéssemos estar agora às voltas com uma nova modalidade. Desportiva ou cultural, consoante o gosto de cada um.
Confusos? Então aqui vai.
Gostam de tourada? Muito? Pouco? Nem por isso?
O tema não podia vir mais a propósito no momento em que se discute se as corridas de toiros devem ou não acabar em Portugal. Como sempre acontece, há muito quem seja a favor mas também há muito quem seja contra. Tenho opinião, mas este não é seguramente o espaço para a manifestar. Excepto se ...
Adivinharam. Excepto se for uma tourada aérea.
Tourada quê???
Aérea, leram bem. Somos um povo de inovadores e era o que mais faltava se não fôssemos capazes de inovar ntambém numa das nossas seculares tradições. Tourada aérea, sim senhor. Passo a contar como foi.
Era uma manhã fria de Dezembro, corria o ano da graça de 1926. O jovem Carlos Bleck, recentemente brevetado como piloto civil, acabara de ser contactado por um seu amigo da Aviação Militar que tinha um proposta irresistível para lhe fazer: juntos iriam ser os primeiros "aerotoureiros do mundo".
-"Aero quê???"
-"Aero toureiros", respondeu o amigo militar
-"Mas...em que consiste esta tourada?", perguntou Bleck
-"Muito simples. Vamos para o ar num dos Avro 504K da Escola de Aviação Militar, tu à frente no lugar do observador e eu atrás no lugar do piloto. Dirigimo-nos ao Mouchão do Tejo* à procura de um touro e quando o encontrarmos apontamos directamente ao bicho. Numa primeira fase ele fica estático a olhar para o aparelho mas quando nos aproximarmos a baixa altitude vira-nos as costas e começa a fugir. Nessa altura a velocidade do touro é quase idêntica à do avião e então tu aproveitas para disparar a farpa através do mecanismo que vamos instalar na fuselagem. A farpa não tem ferro, irá apenas tocar no dorso do animal. Concordas?
Quem não concordaria. Dois "maçaricos" com meia dúzia de horas de voo cada um julgavam-se já, como ainda hoje acontece, grandes ases da aviação. É a fase mais perigosa da carreira de qualquer piloto; não sabe nada de nada mas acha que sabe tudo de tudo e depois estatela-se em grande estilo. Já vimos este filme muitas vezes.
Ora acontece que os nossos amigos se bem o pensaram melhor o fizeram e no dia combinado descolaram de Alverca com destino ao Mouchão do Tejo, que ficava quase em frente. Por "precaução" decidiram descer sobre as águas calmas do rio para dois ou três metros de altitude que manteriam até encontrarem o "alvo". Depois era só segui-lo e lançar a farpa no momento apropriado. Nada mais fácil.
O problema é que o inexperiente aviador, o militar, calculou mal a altitude ou deixou-se enganar pelo efeito de espelho das águas calmas do Tejo e bateu violentamente com o trem de aterragem no rio. O Avro mergulhou de "focinho" e ficou submerso com Carlos Bleck lá dentro, inanimado. O amigo militar teve a presença de espírito suficiente para mergulhar e trazer à superfície o seu companheiro de aventura e entregá-lo nas mãos de dois pescadores que entretanto vieram socorrer os valentes "toureiros". Estes, vendo Bleck inanimado, pegaram-lhe pelos pés e viraram-no de pernas para o ar de forma a que o infeliz expelisse os vários litros de água que entretanto tinha engolido. Assim aconteceu e passados alguns minutos Carlos Bleck estava pronto para outra. Ou a precisar de uma grande sova, como mais tarde o próprio admitiu.
Esta história faz parte da biografia de Carlos Bleck, o histórico pioneiro da aviação portuguesa cuja biografia terminei recentemente. Lá para 2021, se o Covid permitir, teremos livro.


* O Mouchão do Tejo é uma pequena ilha situada no meio do rio ali para os lados de Alhandra.

Por Comandante José Correia Guedes




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