sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A "CLEÓPATRA"

Sempre tive o bom senso e a educação caseira, de me relacionar com toda a gente urbanamente, até ao momento em que reciprocamente houvesse respeito e proporcionalidade no trato, independentemente de se tratar a nível militar de superiores ou inferiores, e a nível civil de conhecidos ou desconhecidos, da raça, religião ou partido, serve este introito para situar o que vos vou contar a seguir. 
República dos Tá-ri-rá-ris - foto de Aco

Do outro lado da avenida em que se situava a República dos Tá-Ri-Rá-Ris no Luso, existiam diversas vivendas de gente abastada para o nível de vida da generalidade da população. Numa delas viviam diversas jovens que estudavam no liceu, mais novas que nós, filhas de brancos que viviam noutras povoações e que alugavam quartos ou viviam com pessoas de família ou conhecidos dos pais, eram jovens com uma visão do mundo totalmente diferente das nossas, nós estávamos ali de passagem por causa de uma guerra que nos era imposta, mas que passado o tempo de serviço obrigatório, era uma realidade rapidamente esquecida a milhares de quilómetros do outro lado do mundo.
Para elas aquela era a sua terra, independentemente de nela terem nascido, e na generalidade dos casos, iriam casar com naturais da Província, constituir família e suceder aos pais nos negócios, mas na tal vivenda existia uma honrosa excepção.
O chefe dessa família, era um homem grande, gordo, bonacheirão e sincero de uma forma desarmante, suava muito, e quando queria alguma coisa de nós ainda suava mais copiosamente, talvez por isso era fácil depena-lo à lerpa, ou a outro qualquer jogo de cartas, tinha negócios de construção civil e de madeiras entre outros, e um grande problema que ele desejava resolver rapidamente, e a que voltava recorrentemente nas conversas, (quatro lindas filhas em idade de casar). 
Segundo ele, já estava muito gasto, não duraria muito mais, e tinha a obrigação de arranjar bons partidos para as suas princesas, bons genros que fossem de preferência brancos, inteligentes e trabalhadores para continuarem os negócios da família. 
Quando tivemos esta conversa pela primeira vez, às tantas eu já não sabia o que lhe dizer, gostava de conversar com ele sobre África, as suas riquezas, e o quanto aquela terra tinha para dar a todos, brancos e negros sem excepção se se conseguissem entender... mas a conversa descambou quando ele me perguntou directamente se eu gostava de alguma das suas filhas. Fiquei desarmado, eu nem sabia quais eram de facto as suas filhas e as que morando em sua casa, não tinham nada a ver com o que o afligia. 
Fui o mais sincero possível, tinha 21 anos, uma comissão pela frente, era ainda muito cedo para pensar em casar e constituir família, ele que não me levasse a mal, achava as suas filhas lindas, mas eram ainda muito novas para já as querer casadas e ele estava ali para durar e ainda tinha uma vida inteira pela frente. Estávamos na varanda da sala e olhei na direcção da sua casa, como era hábito na varanda do edifício estavam elas todas, as quatro filhas mais as outras que constituíam o "harém da casa amarela" como nós lhes chamávamos, e percebi que elas estavam atentas ao que se passaria ali. 
Mas afinal qual era a excepção, que o deixava fora do sério, a mais nova das irmãs, era uma jovem com uns dezasseis anos precocemente desenvolvidos fisicamente, era de facto linda, uma boneca de porcelana, de uma tez de marfim, um sorriso desarmante e completamente consciente do efeito que provocava nos homens, de seios fartos, olhos esverdeados e cabelos negros rebeldes, tinha o dom de amuar fingidamente quando sabia que tinha enredado na sua teia qualquer rapaz que borboletasse à sua volta, passava o tempo a levar os namorados do liceu lá a casa, talvez para nos fazer ciúmes, mas o alvo dela era de certeza um dos Continentais que a levasse dali para fora, pois o Luso era pequeno demais para tamanha ambição, e era isso que ele queria evitar a todo o custo. 
Depois de ter a conversa com o pai, fui avisando o pessoal para lidar com pinças com a "Cleópatra" era assim que lhe chamávamos carinhosamente, comparando-a com a outra que só com um mero olhar governava um império e escravizava qualquer homem que lhe interessasse. Uma distracção e um pequeno "pecado" levariam a um casamento forçado tanto pela parte paternal, como pela FAP, que o "Secarleste", não era para graças, no que tocava a "voos com acrobacias diurnas ou nocturnas não autorizadas". 
Passou o tempo fui para destacamento e esqueci o assunto, quando voltei, a primeira notícia que me deram ainda na placa, mal descera do avião, era que a "Cleópatra" tinha fugido com um furriel do exército. Passou o tempo e semanas depois voltou, o furriel tinha sido dado como desertor e foram ambos presos ao tentar embarcar para a Metrópole, ele por ser desertor com a agravante de raptar uma menor e ela por ser menor, pelo duplo crime, quando ele saísse da cadeia ela já teria cabelos brancos e rugas que chegassem para lhe esfriar a paixão. Ela voltou à sua cruzada, agora já podia fazer o que lhe apetecesse, para isso já dera o primeiro e decisivo passo, tornando-se ainda mais desejada e perigosa...

Luso 1971
OPC ACO 71/73

1 comentário:

  1. Não estou a ver quem é o meu antigo camarada OPC ACO, mas que ele descreveu aqui uma passagem das nossa vidas muito bem, não tenho dúvidas nenhumas. Fiz lá dois destacamentos seguidos e conheci bem a "casa amarela" e o que se passava por lá, porém a história da fuga não conheci, talvez já tivesse saído do Luso e nunca mais lá voltei.
    Gostei de toda a explanação por corresponder à realidade lá vivida.
    Um abraço amigo ACO.

    Sérgio Durães
    OPC 1/68

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