quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

LEMBRAR MOÇAMBIQUE - AQUELE PLANALTO DOS MACONDES !



21/08/71
ZONA DOS PAUS-MUÉDA
Faz 50 anos
"Quando voando em missão de logística, ao sermos alvejados sentindo o violento impacto da metralha perfurando o Helicóptero, sem hipótese de resposta.
Só nos restava tentar escapar, a sensação era terrível, muitos a experimentaram"
Emoções vividas com a intensidade e irreverência dos nossos vinte anos nessa guerra que continua presente e nos vai acompanhar para sempre. Escrever sobre esse tempo é também exorcizar maus momentos que nos ficaram gravados na pele e na memória, e hoje fazem parte dos nossos sonhos e pesadelos, que nos deixam saudade de uma camaradagem e amizade sã e fraterna, e nos atormentam pela perda de tantos de uma forma tão brutal.
Fui Especialista da Força Aérea Portuguesa, Mecânico de Helicópteros ALOUETTE III, essa máquina voadora tão operacional a quem tantos devem a vida.
Procurei cumprir com eficiência e espírito solidário a minha missão.
Pretendo sómente com a minha modesta escrita, dar um contributo para que não caia no esquecimento o sacrifício de uma geração nos melhores anos da juventude.
As agruras passadas não foram iguais para todos, mais para uns do que outros, mas aos nossos irmãos que viviam a angústia constante entre a vida e a morte nas picadas e nas matas, era com a máxima entrega e por vezes no limite que cumpríamos a nossa missão para os ajudar.
Ao relatar-vos momentos e factos ocorridos naquela terra e vividos coletivamente, faço-o sem a pretensão de protagonismo ou vestir-me de falsos heroísmos, pois sempre confessei que tive medo, por vezes muito medo.
No entanto, nobres valores como a solidariedade nos transmitiam coragem para vencer temores e adversidades respeitando sempre um dever de soldado: NINGUÉM É DEIXADO PARA TRÁS.
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Ao pronunciar-mos o nome de Muéda no contexto operacional e territorial em Moçambique, sentimos logo o impacto emocional que essa terra da guerra nos transmite, e o mesmo é falar da zona dos paus, o local no Planalto dos Macondes onde qualquer missão era sempre de enorme risco .
Este território situa-se no Distrito de Cabo Delgado, onde havia uma maior concentração de bases e número de guerrilheiros da Frelimo, povoado pela Etnia Maconde, gente referenciada como inteligente e aguerrida, com uma particularidade; as tatuagens em relevo por todo o corpo dando-lhes um ar de respeito e de alguma agressividade.
ZONA DOS PAUS, era assim conhecida porque toda a área abrangida se distinguia principalmente de uma visão aérea com muitos milhares de árvores secas sem ramagem, sobressaindo no topo da floresta densa e verdejante, que quando ao sobrevoá-la se descortinavam imensos trilhos e palhotas denunciando uma atividade fremente de guerrilheiros na zona, tornando-a num local sinistro e temeroso, sendo os voos e missões aí efetuados extremamente enervantes.
Através deste território e por esta zona, em 1971 foi aberta uma picada ligando Nangade a Muéda.
A meio do trajeto estabeleceu -se um destacamento permanente com um grupo de homens pertencentes a Nangade, comandados por um Tenente que se bem me lembro de seu nome Camêlo.
A designação dada a este local era Nova Beira ou (Litinguinhas).
Em minha consciência tenho que dizer; de tudo o que vi, este destacamento ultrapassou todos os limites no respeitante a condições minimamente dignas para um ser humano e de risco elevado para suas vidas.
Em campo aberto numa clareira na mata sem instalações a nível do solo, vivendo em abrigos no chão como toupeiras sob o flagelo constante por parte da Frelimo, era de arrepiar !
Bravos soldados ! para estes homens a morte não era uma via para chegarem ao inferno, pois eles já o experimentavam em vida ali naquele buraco aberto no coração da selva Africana.
Fazíamos regularmente o reabastecimento àquele local, sendo a primeira leva na ida, Muéda-Nova Beira-Nangade, e no regresso a segunda leva.
Ali demorávamos o menor tempo possível, era aterrar, e sem parar o rotor em poucos minutos estávamos de novo no ar (o local tinha bicho), até doía ver como aqueles camaradas ali sobreviviam.
Para eles a fugaz visita do Helicóptero era um momento de alento que depressa se esfumava com a nossa partida.
O inimigo habituou-se á rotina destes reabastecimentos e sabendo que depois da ida havia o regresso, preparou a estratégia para quando as condições fossem propícias levar a cabo o que veio a acontecer.
-faz 50 anos -
21/Agosto/1971
ALOUETTE III 9369
Piloto -Furriel Cardoso (NIPON)
Mecânico -1° Cabo Serrano.

Pela manhã, e com o Planalto coberto por um manto de cacimbo, o que tornava as operações de voo um tanto perigosas, descolámos de Muéda e prosseguimos em voo rasante seguindo a picada sempre por sobre um dos lados, cruzando-a por vezes para evitar alguns desvios que prejudicassem a linha de voo.
Voo vertiginoso e estonteante, dando-nos a noção da velocidade ao quase tocarmos a ramagem das árvores, obrigando-nos ao máximo de atenção sabendo que a qualquer momento podíamos sobrevoar o inimigo que teria pouca margem de reacção, mas fazendo-nos sentir toda a adrenalina do perigo iminente.
Devido ao dia que se apresentava com pouca visibilidade e teto muito baixo, esta era a forma mais segura de voarmos sem sermos alvejados, sendo a picada a melhor referência para assim chegarmos ao objetivo sem apoio de instrumentos.
Na ida correu tudo bem, no regresso e trazendo connosco cinco camaradas vindos de Nangade, depois de descolarmos da Nova Beira para o trajeto final com destino a Muéda, e com menos de um minuto de voo, o que sempre esperávamos e temíamos aconteceu, fomos emboscados !
Ainda voando por sobre o centro da picada pois deixáramos a alguns segundos e a pouquíssima distância a Nova Beira, como um relâmpago sai dos dois lados na mata uma arrepiante saraivada de disparos de rockets e rajadas de kalashnikov formando uma barragem de fogo impossível de evitar.
Os impactos das balas perfurando o Heli foi aterrador, mas passámos sem que nenhum rocket nos atingisse ou seriamos abatidos.
Imediatamente após o efeito surpresa o Nipon guina o Helicóptero para a esquerda saindo de cima da picada, e invertendo o rumo de volta á Nova Beira, e grita-me: Serrano vê as minhas pernas, algo me bateu, devo ter sido atingido.
De pronto certifico-me e respondo: continua não foste ferido tudo ok.
Sob uma enorme tensão entramos num vertiginoso voo de loucos de uma destreza e perícia de pilotagem irrepreensíveis, rapando a copa das árvores e voando mesmo por baixo delas numa autêntica gincana aérea, fugindo ao fogo inimigo tentando encontrar abrigo onde tínhamos descolado.
Entre os sete que vínhamos a bordo o ambiente era de grande nervosismo e agitação, olhando-nos, vendo se todos estávamos bem e ansiosos por chegarmos a lugar seguro perante uma possível queda do Helicóptero, foram segundos que nos pareceram uma eternidade.
Lá conseguimos! E em emergência aterrámos de novo na Nova Beira, o pessoal estava já formando um grupo para nos procurar pois ouviram a emboscada e perderam o som da turbina do Heli o que os levou a pensar o pior.
De imediato e sem nos apercebermos começaram a bater a zona com fogo de morteiros fazendo tremer tudo num barulho ensurdecedor confundindo-nos como se continuássemos a ser atacados.
Estabelecemos contacto com Muéda a pedir proteção, veio um T-6 e o Heli-canhão, vimos as possibilidades que tínhamos de trazer o Heli a voar fazendo uma inspeção dentro dos condicionamentos do momento e local.
E após uma varridela da zona circundante ao destacamento, com algumas rajadas e lançamento de rockets do T-6 e disparos do Heli canhão, descolámos sem trazer os cinco camaradas que seriam mais tarde recolhidos.
Sempre com a proteção das duas aeronaves uma a cada asa lá chegámos ao A.M.-51.
Já na rolagem para estacionar na placa apercebemo-nos que não tínhamos travão de estacionamento, o que originou um pequeno incidente; devido á inclinação do solo não parámos, continuámos a rolar batendo noutro Helicóptero partindo apenas um vidro da porta.
Depois de uma inspeção mais rigorosa deu-se o Heli como inoperativo pois tinha a estrutura furada, catorze tiros atingiram o ZINGARELHO, um milagre como todos saímos ilesos.
Que resistência impressionante desta inesquecível máquina voadora! Se acaso temos trazido os outros cinco camaradas, devido ao peso, a estrutura enfraquecida cederia e caímos de certeza, provavelmente não sobreviveríamos.
Eram os riscos constantes do pessoal dos Helicópteros os ÍNDIOS, e também dos de outras aeronaves a operarem naquelas zonas .
O final de cada missão era como uma etapa ganha no longo e arriscado percurso no cumprimento de grande parte dos dois anos de comissão naquele teatro de guerra.
Claro que nessa noite foi bar aberto, a despesa coube aos contemplados por terem saído ilesos de mais uma aventura, um ritual sempre vivido nestas circunstâncias quando alguma aeronave era atingida por fogo inimigo.
Nem todos foram bafejados pela sorte, para tantos outros milhares de camaradas (Exército, Força Aérea, Marinha) ela foi madrasta, e ali em plena juventude no cumprimento do dever ao serviço da Pátria, chegaram ao fim da estrada perdendo a vida, e ficando muitos estropiados para o resto dos seus dias.
A guerra com todo o seu rol de atrocidades destruição e morte, marcou-nos profundamente.
A dor pela perda de tantos camaradas e irmãos é incurável.
É impossível esquecer !
Para todos eles o meu RESPEITO e pesar.
Francisco Serrano Mecânico de Helicópteros
Moçambique 71/72




4 comentários:

  1. Caro Francisco Serrano
    Antes de mais, parabéns pela sua descrição.
    Quase sentimos a adrenalina que todos vocês sentiram nesse episódio, tal é a clareza e o realismo do seu relato...
    E, já agora, deixe-me dizer-lhe algo que aprendi com um forcado:
    "Que não tem medo não é corajoso, é maluco. Corajoso é o que, mesmo tendo medo, avança para os cornos do touro!!"
    Sendo que, no caso do episódio que tão bem relatou, os "cornos do touro" eram os comandos do Zingarelho...
    Um abraço

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  2. Uma boa história bem contada. Parabéns camarada Serrano.

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  3. Serrano puseste-me novamente em Mueda. Também me aconteceu cenas deste tipo com abonadelas semelhantes e lembro-me bem, ficou gravado. Abraço .

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  4. Caro Amigo Serrano, li com emoção a sua excelente descrição de uma das inúmeras missões que foram efectuadas pelos "ÍNDIOS". Na realidade, no período em que tive a responsabilidade de comandar a Esquadra, tive oportunidade de sentir o sentido de responsabilidade que a todos nos unia, e a comunhão de valores que determinava a maneira e a coragem com que enfrentávamos as missões que nos eram confiadas. Todos sentíamos por vezes o receio, e porque não o medo, que nos invadia, mas muito em especial nas inúmeras missões de evacuação de feridos das zonas de combate, nunca senti que alguém tivesse outro pensamento que não cumprir a missão. A todos os que tiveram e têm esse orgulho de terem contribuído para as muitas missões de salvamento envolvo num abraço muito fraterno. As Enfermeiras Paraquedistas, os nossos bravos mecânicos, e os pilotos estão para sempre referenciados e marcados nas imagens desse período muito difícil, porque todos passámos, e que perduram ainda hoje nas nossas memórias, como atestam os muitos encontros que ainda hoje temos e os inúmeros contactos que vamos mantendo, sempre recordados com muita emoção e muita amizade. ÍNDIO UMA VEZ INDIOS PARA SEMPRE". Mentalmente vamos todos fazer a nossa " ORAÇÃO".

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