quinta-feira, 22 de julho de 2021

MEMÓRIAS DE ANGOLA - 1973 O ANO EM QUE FUI AO ESTRANGEIRO SEM PASSAPORTE

BA9 - Luanda


Como furriel miliciano MAEQ, com uma sub especialidade em Fotografia Aérea, primeiro curso de sempre na FAP, estava baseado no Comando da Região Aérea 2, Luanda.
O meu trabalho incluía operar a máquina fotográfica WILDE que se montava na barriga do PV2, adaptado para isto. A máquina usava um filme de grandes dimensões, fazendo fotogramas de 23 cm x 23cm. De série, os PV2 transportavam bombas neste compartimento, chamado de “bomb bay”. Eram bombas de 50 kg em série que, como cabo especialista no Luso tantas vezes tinha carregado.
Certo dia, o capitão pilav. que comandava a secção de fotografia aérea, de cujo nome infelizmente já não recordo, informou-nos que iríamos fazer uma missão especial de fotografia, mas que incluía um certo secretismo, vital para o sucesso da operação.
PV2 com pintura anti-radiação

Foi preparado o PV2 com uma tinta antimíssil pois haveria o risco de sermos alvejados. Na véspera da missão fui informado que iríamos fazer duas passagens sobre uma cidade no Congo, Ponta Negra. A primeira passagem seria para alinhar a câmara sobre a área alvo e a segunda para tirar as fotos. Uma vez atravessada a fronteira, qualquer intercomunicação entre mim, o cabo especialista Goulão o Comandante, e o Navegador deveria ser feita em francês! Isto prometia...
Pela madrugada, fomos recolhidos das nossas residências pelo motorista da carrinha de transporte e, como tantas das outras vezes, levados à BA9, ao lado do aeroporto de Luanda.
Em vez de branco e prateado, a nossa aeronave tinha agora uma cor cinzento esverdeada, baça. Então esta era a tal tinta especial que nos iria proteger dos possíveis mísseis do Congo Brazzaville! Boa sorte, pensamos nós.
Os pilotos, o nosso capitão e um navegador, dirigiram-se para a sala de operações para prepararem o plano de voo e alguns minutos depois lá entramos para o aparelho. Não levávamos connosco qualquer identificação. Tão cedo e já se apercebia mais um dia quente.
AM95 - Cabinda


A nossa viagem prosseguiu em direcção a Cabinda, AM 95, que seria o nosso destino para esse dia. Como sempre, nunca me cansava de olhar para a paisagem lá em baixo, ora savana, ora arvoredo denso, recortada pelo serpenteado dos rios, brilhando como espelhos sob o sol escaldante. A contrastar com o calor lá em baixo, fazia fresco dentro, e como era hábito, trouxera agasalho suficiente. Enquanto piloto e navegador se ocupavam com o seu trabalho, tanto eu como o Goulão passávamos pelas brasas ou olhávamos lá para baixo, vendo o terreno lentamente a passar. Como se sabe, o ruído no interior não permitia qualquer conversa extensa, limitando-nos a berrar se precisássemos de o fazer. O intercomunicador estava ligado ao comandante e co-piloto.
Ao fim de umas horas, vislumbramos sinais de uma povoação e um rio, e soubemos que tínhamos chegado a Cabinda.
Tinha chovido e havia no ar um cheiro refrescante e húmido.
Depois de tudo arranjado, incluído refeição e alojamento, um passeio pela cidadeumas cervejas no bar e cama. Amanhã seria o dia...
Partimos cedo, depois de um pequeno-almoço reconfortante e, alguns minutos depois da descolagem, vejo pela escotilha um avião da FAP, um B26 a voar em paralelo, não muito distante. O comandante informou-nos que era o capitão Canto e Castro que ira escoltar-nos até à fronteira. A partir dali, estávamos por nossa conta!
B26


Quando chegámos ao ponto combinado, o B26 abanou as asas umas quantas vezes como que em despedida e a desejar-nos boa sorte, e lá atravessámos o rio para terras desconhecidas e proibidas. No momento da travessia, todas as comunicações foram cortadas e a nossa missão seria de comunicar prontamente se víssemos algum ponto luminoso a deslocar-se para nós. O comandante teria poucos segundos para fazer uma manobra de diversão e sair da trajectória de algum míssil. Isto se o míssil não fosse daqueles tão sofisticados que seguem o seu alvo, mesmo com desvios. Sendo realista, que hipóteses poderíamos ter de fugir a um projéctil num avião tão pesado e quase obsoleto, dos tempos da segunda guerra mundial? Nossa Senhora...
Na realidade, chegamos à cidade, o nosso alvo, pouco tempo depois. Como planeado, o piloto apontou à trajectória, seguindo uma artéria principal da cidade e, depois de passarmos os limites da cidade, fizemos uma manobra de 180 graus, ligamos a câmara e toca a disparar. Agora era a nossa única “chance”.
Tirando fotos com a Wilde,
a bordo do PV2

Enquanto um olhava para o visor da câmara e informava o comandante para fazer as devidas correcções de deriva com, “gauche”, “droite” o outro mantinha os olhos bem abertos para os potenciais mísseis. Mísseis esses que nunca chegaram, felizmente. Ainda não muito descansados, e com a adrenalina no máximo, atravessámos novamente o rio, que marcava a fronteira, e fizemo-nos directamente a Luanda. Os espíritos estavam altos e todos nos congratulámos com o bom sucesso da missão. Missão cumprida!


Por: Álvaro Santos Sá 



4 comentários:

  1. Caro Álvaro Santos Sá, quantos episódios como este não existirão nas memórias de muitos camaradas nossos...
    Felizmente este, foi reduzido a escrito.
    Obrigado pela partilha.
    Uma óptima descrição que deixa adivinhar o estado de espírito e a sensação de aventura que trouxe a quem viveu esta missão. Afinal, não passávamos de cachopos com uma farda militar (no meu caso, comecei com 17 anos...) e encarávamos missões como esta, com um certo aventureirismo, embora também com seriedade e empenho.
    Um abraço
    Vítor Beça
    Eabt - 71/73
    (Ota, Lajes, Montijo, Bissalanca... seguido de evacuação e fim da tropa...)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado Vitor. Parece que andamos pelo Ultramar na mesma altura. É bom que haja mais gente a contribuír para a nossa memória coletiva. Abraço.

      Eliminar
    2. Olá Vitor. Obrigado pelo comentário. É bom que haja mais descrições de episódios que contribuam para uma vizão pessoal do que foram aqueles anos da nossa vida.Servem para nós recordarmos e os mais novos conhecerem. Um abraço.

      Eliminar
    3. É verdade Vitor Beça. Agradeço o comentário. Foi sem dúvida um período formativo e empolgante das nossas vidas. Espero que haja mais camaradas que se disponham a escrever as suas experiências, pois assim ficará um contributo para a nossa memória coletiva. Como sempre digo, reviver é viver. Um abraço.

      Eliminar