quinta-feira, 1 de julho de 2021

O MORTEIRO


Mais um início de tarde escaldante de Verão, na praça principal da Vila nada bolia, era a hora habitual em que a população se resguardava do sol ou dormia uma sesta retemperadora. Na esplanada do Café Central, para além das mesas e cadeiras, o mestre Henriques como era seu hábito, dormitava num equilíbrio instável, abandonado dentro de um gibão preto de grosso surrobeco, só perturbado por algumas escassas moscas que teimavam em disputar o único ser vivo que resistia ao calor da tarde, toda a gente fugira para as sombras acolhedoras do Café Central e da Barbearia do "Xixóia", já me tentara infiltrar em ambos os locais mas tinha sido rapidamente enxotado para não incomodar os raros e destemidos fregueses que naquela hora tinham ousado fazer-se à canícula para sair de casa.
Como nunca fora capaz de dormir a sesta, arrastava-me preguiçosamente pelos bancos junto à praça dos táxis, tentando matar o tempo com alguma coisa de interesse que me ajudasse a aguentar, até que o resto da canalha, viesse novamente para a rua e pudéssemos gozar mais uma tarde de magníficas férias grandes.
Dirigi-me mais uma vez até ao chafariz com o intuito de molhar a cara e matar a sede, quando terminei, reparei curioso que um pardal com uma enorme palha de trigo atravessada no bico teimava em atirar-se contra a sirene do quartel dos bombeiros do outro lado do largo, aquilo era no mínimo muito estranho, desloquei-me rapidamente para fugir ao sol inclemente e aproximei-me da entrada do quartel situado entre o Café Central e a Papelaria Havanesa, passei o largo portão e procurei o melhor ângulo que me permitisse ver tão insólito acontecimento sem que o Sol me encandeasse, aquilo que mais me chamou a atenção foi verificar que a sirene tinha as lâminas semicerradas, mas de alguns dos espaços saíam pedaços de palha de trigo semelhantes à que o pardal transportava, após ter dado voltas ao corpo da sirene com a palha no bico esvoaçando para cima e para baixo, percebeu que não conseguia entrar, abandonou a palha e desapareceu, levando com ele o único motivo de interesse que me trouxera até ali, olhei em volta desanimado reparando no único ser vivo em movimento, o mestre Henriques desistira de brigar com as moscas e dirigia-se amparado na grossa bengala de vime, vagarosamente, para a barbearia do Xixóia, o que me levou de novo ao chafariz para beber mais uns golos de água.
Tudo parecia voltar ao normal, quando subitamente um homem irrompeu pela praça vindo dos lados do campo montado numa bicicleta e gritando a plenos pulmões:  há fogo! há fogo! Acudam que há fogo! saltando da bicicleta em andamento e entrando no quartel a correr, enquanto a bicicleta se estatelava no chão... nem acabei de beber, já tinha a tarde garantida, corri para ver tudo desde o tocar da sirene, a chegada dos bombeiros e a saída dos carros, o 2º Comandante Bogalho não estava presente, mas a esposa Dona Conceição, que vivia com ele no quartel, dirigiu-se rapidamente para o quadro de Comando, enquanto ouvia a descrição atabalhoada do local e do tipo de fogo para poder dar com o toque da sirene a informação aos bombeiros, todos eles voluntários, que viriam já com a certeza do que tinham de enfrentar (fogo na vila ou fora, acidente na vila ou fora, afogamento na Alverca, no Tejo ou fora).
Quando ela accionou a alavanca da sirene corri para fora para ver o arranque e o início do silvo, mas nada aconteceu, voltei para dentro expectante enquanto ela com ar de espanto accionava desesperadamente o manípulo para cima e para baixo e nada acontecia, pelas luzes do quadro era possível verificar que havia electricidade, mas a sirene não arrancava, virando-se para mim gritou, tu que corres mais depressa, vai chamar o Comandante que deve de estar no café Central, para que ele venha cá para resolver a situação... Corri com quantas forças tinha e entrei no café atirando com as cortinas metálicas que impediam as moscas e os pobres de entrar, provocando o olhar reprovador dos clientes presentes e gritei: a sirene não trabalha, dirigindo-me ao Comandante, a dona Conceição mandou-me chamá-lo... 
Ele levantou-se com ar de enfado e virando-se para o empregado de balcão ainda confirmou, ó António! há corrente? Depois da resposta afirmativa deste, dirigiu-se comigo e mais uns quantos atrás para o quartel, a dona Conceição já tinha telefonado ao marido, que estava de serviço no matadouro municipal e este já lhe dissera para ela arranjar alguém que fosse tocar o sino a rebate enquanto a sirene não arrancasse, foi isto mesmo que ela transmitiu ao Comandante mal este chegou ao quartel, depois de também ele tentar dar o arranque da sirene sem que nada acontecesse, mandou alguns dos presentes tocar o sino a rebate, pois era uma das formas de convocar os bombeiros; entretanto o Comandante e os presentes começaram a abrir os portões para a saída das viaturas e a pôr em marcha os motores para que estas arrancassem assim que conseguissem chamar os bombeiros, o primeiro carro a sair seria o enorme camião Ford aberto, de transporte de pessoal e quando este já estava cá fora, chegaram os que tinham ido tocar o sino, dizendo que a igreja estava fechada e que não conseguiam tocar o sino... O comandante virou-se para a dona Conceição e perguntou-lhe se já tinham entregue os morteiros especiais que mandara fazer para a festa de angariação de fundos para comprar material?
Ela benzeu-se e disse-lhe; estão lá dentro! Ele virando-se para um dos presentes disse-lhe: ó Joaquim pega aí nessa escada e encosta-a ali ao muro da parte de dentro que eu já lá vou ter, dirigindo-se para o interior do edifício de onde voltou com um morteiro enorme, com uma cana com mais de dois metros e perto de um quilo de pólvora preta, dirigindo-se aos presentes sentenciou; agora é que vocês vão ver como acordo a vila toda e ponho aqui a corporação num instante; quero toda a gente fora daqui que isto não é nenhuma brincadeira, um bicho destes até arranca um braço a um homem... Eu fugira esbaforido como toda a gente para o outro lado da rua e refugiara-me atrás do tronco mais grosso de um dos plátanos que davam sombra à praça e á esplanada do café.
O Comandante, trepara pela escada, subira ao muro e num gesto teatral, olhou a meia dúzia de basbaques enquanto encostava a cigarrilha, que entretanto acendera, no cu do rastilho do morteiro, gozando com as caras de espanto dos presentes, mais ridículas ainda quando vistas do cimo do muro de onde as contemplava sobranceiramente, as faúlhas começaram a sair do cano do rastilho e o barulho começou a ser cada vez mais assustador, o Comandante já não tinha a cara sobranceira que apresentava quando iniciara o lançamento e parecia que os segundos decorridos se iriam eternizar, mas por mais que ele levantasse e baixasse o foguete como para o incentivar a subir, ele continuava perigosamente sem lhe sair da mão, os presentes começaram a gritar-lhe que o largasse, enquanto o seu rosto se transformara numa máscara de medo, toda a gente já se barricara em tudo o que podia dar alguma protecção e não restou ao assustado Comandante outra solução que a de largar a cana do monstro e olhar horrorizado enquanto ela batia no chão na vertical e o peso descentrado da pólvora obrigava a cana a cair na direcção da rua D. Afonso Henriques, o Comandante na precipitação da fuga desequilibrara-se e caíra de costas para o interior do Quartel, eis senão quando, o morteiro finalmente arrancou, fulminante, qual míssil rasando o chão em direcção á porta poente da barbearia... na cadeira mais distante desta o mestre Henriques, ressonava após lhe terem feito a barba, na outra junto à porta por onde entrara o morteiro, o mestre barbeiro fazia a barba a um outro cliente quando o foguete lhe passou junto ás pernas atravessando a barbearia indo enfiar-se na dispensa onde se guardavam os utensílios usados no ofício, o pó da espuma de barba, os rolos de papel para limpar as navalhas, as toalhas, os perfumes, e os artigos de limpeza...
Aos gritos de fujam, fujam, dos presentes fora da barbearia, todos, mestre barbeiro e clientes fugiram pelas três portas abertas do estabelecimento, todos menos o mestre Henriques, que dormia e lá ficou, com o foguete a incendiar tudo com as faúlhas e na iminência de explodir, do meu local de observação, via parte das pernas, o gibão e uma manga caída de onde saía uma mão e pouco mais, e o pior aconteceu, um estrondo descomunal que estremeceu tudo e todos, estilhaçando os espelhos e vidros das portas, arrancando-as, enquanto uma nuvem de pó branco encobria todo o edifício e parte do largo. Passados segundos de pânico, toda a gente correu para a barbearia esperando o pior, quando do meio da nuvem surgiu um fantasma todo branco cambaleando, aos gritos de: ai que me mataram... ai que me mataram... toda a gente recuou de pavor e estupefacção, no êxtase da situação, gritei em pânico: fujam que é o fantasma do mestre Henriques, arrancando uma gargalhada geral aos presentes... O fogo entretanto já assumira contornos de tomar conta do estabelecimento, quando o Comandante, que entretanto se recompusera gritou para os presentes, vão buscar uma mangueira para apagarmos o fogo!
O bom do mestre Henriques fora arrastado para a esplanada, enquanto um dos empregados do café trazia numa bacia com água um toalha molhada para ele tirar os quilos de pó de barba da cara e mãos, mas era necessário ir com ele ao hospital, pois estava cheio de escoriações provocadas pelos estilhaços da explosão, para além de estar aflito dos tímpanos, e isso só era possível de verificar por algum médico ou enfermeiro. Entretanto começavam a chegar os primeiros bombeiros enquanto se apagava o fogo da barbearia, mas era preciso ir apagar o fogo no campo que originara toda aquela confusão, e por cada um que chegava tínhamos que lhe gritar que o fogo não era aquele, mas sim outro e eles lá iam equipar-se sem perceberem nada do que se passava ali...
Com o lançamento da água, todo o pó de barba derramado ia-se tornando numa onda de espuma que transbordava do interior pelas três portas, formando uma camada escorregadia que já dava pelos joelhos dos que mais perto combatiam o fogo do interior, e a cada novo voluntário que de bicicleta ou a pé correndo se aproximavam do quartel, era necessário gritar-lhes que travassem as bicicletas e o passo, pois ao menor descuido a queda era certa...
Depois de haver o número mínimo de voluntários necessário ao combate dos dois fogos as viaturas lá foram saindo, mas nunca como naquela tarde eu tivera tanto para contar aos meus preguiçosos companheiros de brincadeira...
E afinal porque é que a sirene não tocara? O pardal que eu vira com a palha no bico e a companheira, resolveram fazer o ninho dentro da sirene, mas um golpe de vento, ou o acumular das palhas no interior fizeram cerrar as lamelas bloqueando a entrada e a saída, o desespero do macho era por a fêmea do casal, estar lá dentro provocando a sua morte e a avaria da sirene.
Dias mais tarde, quando fizeram finalmente a festa para angariação de fundos, para compra de material e reconstrução da barbearia, ouve concerto pela banda, música e bailarico, mas foguetes é que não, que para o susto já bastara o que acontecera, mas festa que não metesse “morteiros” não era festa...        

JFMA (ACO)     
Golegã, 15 de Agosto de 1957

Sem comentários:

Enviar um comentário