quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O MEU INGRESSO NA FAP


Há 57 anos estava a embarcar no comboio para ir ser militar da FAP. Apresento, de seguida, aos meus amigos, um pequeno relato desse acontecimento, que escrevi há uns anos e que é o seguinte:
O meu ingresso na Força Aérea Portuguesa
Naquele dia 15-01-1964, levantei-me muito cedo, tinha de ir apanhar o comboio à Estação da Funcheira, a fim de me deslocar para Tancos, pois ia assentar praça na Base Aérea nº 3. Tinha apenas dezassete anos de idade, mas já me sentia suficientemente amadurecido para enfrentar uma nova etapa da vida.
No percurso até Lisboa ia desfiando lembranças daquela etapa juvenil que eu sentia nitidamente haver terminado ali. Lembro-me perfeitamente de me ter lembrado de como matei o primeiro pássaro com fisga. Foi um pintarroxo. Eu ia para a escola e, como sempre, levava a fisga para o que “desse e viesse”. Vi então no cimo de um chaparro um pintarroxo, muito descuidado, a cantar uma melodia que nunca mais acabava. Devia estar a chamar a sua amada que, provavelmente, se encontrava por perto à procura de alimento. Então eu, qual guerreiro destemido, com o coração a bater aceleradamente e já antevendo um feito extraordinário, saquei da fisga que trazia no bolso das calças e, pé ante pé, procurei um seixo que servisse para “carregar a arma”. Fiz isto com todo o cuidado, não fosse o pássaro voar para bem longe. Coloquei o seixo no cabedal da fisga e agarrei na forqueta da mesma com a mão direita ao mesmo tempo que estendia o braço na direção da vítima, esticando com a outra mão, na direção inversa, os elásticos que iriam arremessar o projétil fatal. Apontei com toda a sabedoria e larguei o cabedal que alojava o seixo. Este saiu disparado a grande velocidade e foi atingir o pássaro no peito, fazendo soar um “pam” característico proveniente do impacto mortal. O desgraçado do pássaro nem teve tempo de saber o que lhe aconteceu, morreu instantaneamente. É claro que naquele momento me senti o maior de todos, o que talvez tivesse feito despertar em mim um certo instinto guerreiro.
Tão absorto ia com estes pensamentos que, tendo puxado de um cigarro (naquele tempo podia-se fumar nos comboios, nos autocarros, nos cinemas, em todo o lado), tirei o isqueiro que levava no bolso e acendi o cigarro com aquele estilo tão ensaiado que todos os jovens praticavam para impressionar as raparigas. Nem me lembrei que para o fazer tinha de ter licença. Sim, nessa altura, para usarmos isqueiro tínhamos de tirar uma licença, salvo erro, na Repartição de Finanças. Eu não tinha tal licença, mas o senhor que viajava a meu lado, fiscal dos isqueiros ou das Finanças, foi tão simpático que achou melhor não me multar. Disse para eu ter cuidado e apreendeu o objeto do “crime”, neste caso, da transgressão. Fiquei sem o isqueiro e ainda lhe agradeci por fim, mas daí em diante passei sempre a usar fósforos.
A partir de Santa Apolónia, em Lisboa, lembro-me de ver muitos rapazes a travar conhecimento uns com os outros, levavam certamente, pensei, o mesmo destino que eu. Efetivamente assim era, íamos todos apear-nos em Almourol. Aqui chegados, pensávamos, ingenuamente, que haveria algum autocarro da BA3 para nos transportar até à Base. Puro engano, os soldados “prontos” que também tinham viajado no mesmo comboio disseram-nos que teríamos de fazer o percurso a pé, não obstante a chuva que caía sem parar. E assim fizemos, agarrámos nos sacos e malas de viagem e rumámos à Base. Éramos uns quarenta e tal que, em poucos minutos, ficámos encharcados até aos ossos. Assim que passámos a Porta d’Armas, como estávamos cheios de fome, fomos falar com o Oficial de Dia, tendo este providenciado comida para aquela gente toda.
Seguidamente, forneceram-nos duas mantas, dois lençóis, uma fronha e uma almofada a cada um e fomo-nos deitar. No dia seguinte, por volta das seis e meia da manhã, começámos a ouvir uma música de clarim ou clarinete muito estridente e que desconhecíamos em absoluto, era o toque da alvorada. Mas tudo bem, lá nos levantámos e, depois de prontos, barbeados e arranjados, ainda sem ser em formatura, seguimos para o pequeno-almoço. O pequeno-almoço foi café com leite e pão com marmelada, mal sabíamos nós que aquele pequeno-almoço iria ser sempre e invariavelmente idêntico ao longo de todo o tempo de serviço militar, ou seja, para mim, durante três anos, sete meses e doze dias. Ganhei tal aversão ao pão com marmelada que ainda hoje não posso comer tal coisa. Deixei passar um pormenor com algum significado, pelo menos para mim, que é o seguinte: nessa primeira madrugada na Base Aérea, depois de me levantar e quando já estava no balneário para lavar a cara, coloquei a toalha de rosto no cabide que ficava mesmo por cima da torneira de água corrente, abri a torneira e fiz uma concha com as mãos para levar um pouco de água ao rosto e esfregar a cara e os olhos com águas fresca. Assim fiz, mas ao levantar a cabeça e abrir os olhos reparei que, entretanto, a dita toalha tinha desaparecido. Foi este o primeiro “desvio” que sofri na tropa, coisa de pouca monta, é certo, mas que me ensinou a ter mais cuidado dali em diante.
Logo após o pequeno-almoço dirigimo-nos à secção de fardamento para recebermos todo o material que nos estava destinado. É claro que, a troco de algumas gorjetas que íamos passando para a mão do pessoal da secção de fardamento, a qual se havia subdividido em várias secções (secção das calças, secção das botas, secção das camisas, secção dos “papalvos”, etc.), lá ficávamos com uma peça ou outra mais à nossa medida. Não obstante isso, só depois de nos fardarmos é que ficámos a ver como parecíamos ridículos, eu via-me um autêntico palhaço (sem desprimor para a respetiva classe muito digna) com uma botas enormes, umas calças que serviam a dois como eu, um bivaque que me tapava as orelhas e uma camisa que rebentava pelas costuras, de tão apertada que me ficava. Tivemos então de trocar várias peças entre uns e outros e não há dúvida que as coisas começaram a compor-se desde essa altura. Agora já nos sentíamos soldados a sério.
Março de 1964, curso de PAs


Resta acrescentar que alguns camaradas foram desde logo “rebatizados”, passaram a chamar-se o “Twist”, o “Alentejano”, o “Mirandela”, o “Formai”, o “Almeirim”, o “Portel”, o “Algarvio”, o “Estoi” e tantos outros bons amigos. A muitos deles, infelizmente, perdi o rasto, mas estou sempre a recordá-los assim jovens como os conheci.
Baixo Alentejo, 30-10-2006




1 comentário:

  1. Não é dessa altura em Tancos um aspirante Jorge Bacelar?

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