quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O VOO DE SUA EXCELÊNCIA


Salazar não era dado a modernices e muito menos a coisas que envolvessem máquinas. Detestava. Era, ao que consta, homem da caneta e do papel, matérias em que dava cartas. Em sentido figurado, obviamente.
Mas um dia teve que ser.
Era a TAP. Em 1945 Sua Excelência tinha dado ordens ao director do Secretariado da Aeronáutica Civil, Humberto Delgado, para criar os Transportes Aéreos Portugueses, mas vinte anos tinham passado e SEXA nunca tinha entrado num avião.
Também já tinha liquidado as pretensões aeronáuticas de D. Manuel de Mello e Carlos Bleck que, imagine-se, pouco tempo antes e à revelia de Sua Excelência decidiram formar uma companhia de aviação privada a que deram o nome de CTA, Companhia de Transportes Aéreos. Matou a CTA à nascença por interposto director do SAC. Tudo isto sem nunca ter posto os pés num avião.


Algo teria que ser feito.
Assim, quando o Presidente do Conselho foi convidado para discursar no 40º aniversário do golpe militar de 28 de Maio de 1926, em Braga, um dos seus assessores (na altura não tinham um nome tão chique) sugeriu que fizesse a viagem até ao Porto de avião. Era coisa pouca, cerca de uma hora, e o povo iria gostar de saber que Sua Excelência confiava na TAP e nos aviões em geral.
Salazar hesitou. Achava que isso de voar era com os pássaros e olhava com desconfiança para aquelas máquinas barulhentas que de vez em quando caiam do Céu aos trambolhões. Tinha razão. Naquela altura a segurança de voo ainda deixava muito a desejar. Era preciso ponderar os prós e os contras.
Mas lá o convenceram.


Assim, a 25 de Maio de 1966, Sua Excelência embarcou em Lisboa num Super Constellation da TAP que o levaria até ao aeroporto de Pedras Rubras, no Porto. Fazia-se acompanhar pelo Presidente da TAP, engº Vaz Pinto, não fosse alguma coisa correr mal com o serviço.
Aos comandos do CS-TLF (matrícula do avião) estava o Cte Rodrigues Mano, um veterano com larga experiência de voo que tinha integrado o grupo conhecido como "Os Onze de Inglaterra", como eram conhecidos os primeiros pilotos da TAP formados em 1945 na companhia inglesa BOAC.
A viagem decorreu sem sobressaltos, mas tal não foi suficiente para convencer Sua Excelência que, pouco após a aterragem, fez questão de ir ao cockpit dizer ao Cte Mano que "não tinha gostado". Não deu explicações nem ninguém se atreveu a pedi-las, mas o facto de ter regressado a Lisboa de comboio foi por demais eloquente.


Assim aconteceu a primeira e única viagem aérea de António de Oliveira Salazar, principal responsável pela criação da TAP e liquidação de toda e qualquer espécie de concorrência.
Hoje parece absurdo mas na altura era assim que as coisas funcionavam. Sua Excelência decidia e ninguém fazia perguntas. Os que faziam (Carlos Bleck foi um deles) raramente tinham grande futuro no mundo dos negócios.




Por Comandante José Correia Guedes








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