O texto “Os Cavaleiros d`Anhara surgiu como uma revolta contra certos senhores que por aí andam a propagandear as dificuldades que tiveram de passar em Paris, com a mensalidade atrasada...e dizem-se esclarecidos, amigos dos povos, quando na verdade tentavam apenas salvar o traseiro ao conflito. Estou a escrever-te isto com a autoridade de quem contigo por ali andou, sentias que aquela guerra não era contigo, mas como muitos milhares tinhas compromissos sociais e familiares que não te permitiam uma simples retirada para Paris. Isto é particularmente importante quando penso que ambos tínhamos condições familiares capazes de nos apoiarem financeiramente nessa outra aventura.
...na minha terra um desertor
dos campos da Flandes, na 1ª guerra mundial só ao fim de 35 anos pôde
regressar...
Por outro lado fui convidado
para um convívio dos Dragões de Angola, de que faziam parte o esquadrão de
cavalaria com quem estivemos na Cameia. Impressionou-me saber que foram aqueles
homens os últimos a abandonar Luanda às dez da noite do dia 10 de Novembro de
1975, duas horas antes de ser proclamada a independência, garantindo assim a
segurança até ao último minuto. Não seria tão importante assim se não soubesse
que todos eles foram de recrutamento angolano, por serem ali nascidos ou
criados. Voluntários! A cada um foi questionado se queria partir ou ficar nesse
último grupo e ficaram firmes, tenho assim de ter alguma admiração por eles.
Nesse convívio, o primeiro que
frequentei depois de trinta anos, apercebi-me quão injusta tem sido a sociedade
para com esses e outros milhares de jovens que como nós foram enviados para
longe e ali cumpriram a sua missão e hoje andam pelos cantos dos cafés das
aldeias envergonhados da missão que tão arduamente cumpriram. Pode-se acusar o
sistema político, o soldado tem de ser respeitado, cabe a quem tenha a
capacidade, recuperar e louvar esta memória colectiva e ando a ferver com este
tema e sinto que algo tenho de fazer. Costumo dizer que não sou bélicista porque
fiz a guerra, não sou pacifista, porque tenho medo da guerra.
Por mim foi também uma
experiência humana enriquecedora, no sentido em que nunca tive uma experiência
negativa na minha vida, tive sim algumas experiências que me custaram muito.
Por isso e tentando rememorar a situação cá vou tentando reanalizar a situação
que me levou até ao Macondo...
Se há coisas de que estou
consciente é que nunca tive feitio para ser militar, um dia mandaram-me
comandar uma companhia, precisamente a companhia sedeada na Calunda, bem lá no
centro do saliente do Cazombo e a uma altitude superior a 1700 metros.
Não sei se consegues
imaginar-me nessa situação, mas no dia seguinte às oito da manhã lá estava eu
com a barbinha feita a tentar manter as aparências. Estava consciente de que
aquele grupo de homens, em caso de conflito esperava que eu o “seu comandante”
tomasse as decisões certas, que garantisse a segurança e a vida daqueles homens
que esperam isso mesmo do líder...e eu não me tinha oferecido para ali estar...
É costume dizer-se que por um
sorriso vale a pena, hoje ao rever estas imagens, este sorriso, apesar de tudo
este bebé rechonchudo penso que não foi em vão o tempo que por ali passei,
sentia que a população se sentia protegida e muitas vezes me vinha dizer “anda
bandido aí nos lavra a roubar comida”, Macondo, bem lá no fundo do Saliente do
Cazombo foi onde passei os últimos quatro meses.
E muitas vezes me
recordo desta passagem para a minha coutada privada para lá do rio Macondo. Ao
ler hoje um pouco de história, ao saber que os portugueses ocuparam esta zona à
menos de 100 anos, zona de disputa relacionada com o Mapa cor-de-rosa e também
por causa da questão do Barotze. É que toda a província do Moxico faz parte já
da bacia hidrográfica do Zambeze, da África oriental.
Eram as ideias da época, mas
acima de tudo ideias de quem pensava em grande, vemos hoje a juventude
portuguesa a admirar Cristóvão Colombo, porque a Coca-Cola o promove como o
grande navegador, quando não passou de um subproduto da aventura marítima dos
portugueses, em nada se podendo comparar com o feito de um Vasco da Gama e
outros. Há demasiados carneirinhos de animação, que se julgam originais...sem
ideias próprias, eternos risonhos amorfos, “os iluminados”.
O Macondo vem nos mapas,
fica ao sul do Saliente do Cazombo, bem lá no Leste de Angola. Era apenas isto
um posto administrativo à esquerda, um pequeno quartel à direita e uma
pequena sanzala, era o destacamento mais a leste de Angola, e no entanto
até um ministro zambiano por aqui passou...coisas secretas, planos a
decorrer...estávamos em princípios de 1973.
Uma pequena sanzala onde morava uma população tranquila e é por isso que muitas vezes me recordo dos bons tempos que por ali passei. Apenas uma vez fiquei atónito quando na ausência do chefe de posto, me vêm pedir autorização para fazer batuque, porque razão eu um europeu no meio de África teria de estar a autorizar ou não a fazer batuque? Claro que adormeci com o troar dos tambores africanos.
Caçando Javalis com o meu companheiro
José Mwoca à minha esquerda, elementos da população armados para auto defesa,
as armas eram Mauser de 1904, tendo gravado nos canos D. Carlos I Rei de
Portugal e dos Algarves... e era com eles, pisteiros extraordinários que corria
as matas à volta do quartel. Os javalis eram tantos que atacavam as lavras de
noite. Vês! Nós confiávamos-lhe as armas...
Fala-se muito do pouco que os portugueses por ali fizeram, por mim fico a olhar para esta escola e à sua localização, lá, muito mais longe que o “depois de” havia uma escola, um professor, um posto de enfermagem, que funcionava no quartel, não pretendo com isto defender o “sistema” então vigente, mas mostrar que alguma coisa se fez, coisas de que nos podemos orgulhar, havia boa vontade, outras razões, a história que as discuta.
Ainda hoje não me canso de olhar para este “diploma” que o Zeca António resolveu expor na parede da sua cubata, o seu diploma de 2ª classe e penso que mais que a guerra para onde me mandaram, por ali garanti a paz, ali permiti que outros Zeca António tivessem a sua escola e eu tenho muito orgulho em ter contribuído para isto e gosto de espetar este diploma na cara de muito boa e convencida gente...
Se juntares a isto alguns dos mais belos pôr de sol que alguma vez vi na minha vida, o que de alguma forma compensava as frustrações por que passámos, bem diferentes daquelas outras de que se queixam hoje em livros dramáticos aqueles outros esclarecidos “amigos dos povos”...Refugiados em Paris...
Mas houve outras compensações encontrei outras gentes e um campo fotográfico que se estendia de coisas simples como este moinho que seria quiçá a maior glória e alegria de um arqueólogo, mas que consegui fotografar “a funcionar”, captando o movimento daquelas mãos moendo o massango...dez mil anos de história neste balançar de mãos e um eterno sorriso nos lábios...
E ainda uma piscina privada com água corrente, pois foi construída em cima de uma nascente, vendo-se borbulhar a areia no fundo, é caso para pensar que nem tudo foi tempo perdido por ali. Falta expor o segredo do Macondo, um plano secreto para o futuro de Angola, em que participei activamente desde o Luso. Quem o sabotou?
Lembro-me que o “Rapaz Amaro” o médico veterinário estava ali contrariado.
A mulher estava à espera do
primeiro filho, tinha acabado o tempo e lá estava ele a tratar dos cavalos,
longe da esposa com quem gostaria de estar nesses momentos. Mas chegou a tempo
e a menina lá nasceu com a sua presença, cheguei a conhecer a menina e a mãe,
formada em economia, nunca mais soube nada deles...
Enfim noutros tempos poderíamos ter tido outras condições e ter ficado nas instalações turísticas do Parque Nacional da Cameia. Chegámos lá tarde de mais, ou cedo de mais, já que parece que estão a tentar recuperar o parque. Sabes que mais, apesar de tudo não deixei de andar por lá a fazer turismo...hoje rio-me ao imaginar-te a contar estas coisas aos netos...
Enfim noutros tempos poderíamos ter tido outras condições e ter ficado nas instalações turísticas do Parque Nacional da Cameia. Chegámos lá tarde de mais, ou cedo de mais, já que parece que estão a tentar recuperar o parque. Sabes que mais, apesar de tudo não deixei de andar por lá a fazer turismo...hoje rio-me ao imaginar-te a contar estas coisas aos netos...
Mas sim fiz algum turismo,
muito voei naquelas longínquas terras, de onde trouxe histórias para contar.
Começaria por esta vista aérea das quedas de Chafinda. Um dia mandaram-me lá
fotografar isto mais de perto e fui...e cheguei a estar atrás daquelas quedas,
afinal todas as quedas de água têm uma caverna por trás, Chafinda a tão bela,
emocionante, traiçoeira e perigosa Chafinda...
E fui também às
quedas do Dala que sobrevoei em Helicóptero
E fotografei Lagos
e florestas encantadas
E as flores da
Acácia Rubra
E as flores da
Mangueira e flores selvagens que cresciam por lá
E fui à praça do Luso, a ver como era e vi torrar
ginguba ali mesmo, orgulhosa uma mamã passeava a sua filha enquanto procurava
Tuqueia e Bagres secos da Cameia
Na verdade não
foram só os cavalos que vi por lá
Andei a cavalo na Cameia, voei nos Allouete III e nos T-6
Harvard, nos Noratlas ou Barriga de Ginguba, a jacto e hélice, atravessei o
Zambeze em Zebro na Lumbala
Viajei para Teixeira de Sousa no Mala puxado por
uma locomotiva a vapor, uma NONA, com serviço de restaurante de primeira
classe, fotografei em Cangumbe uma GARRATT a mais poderosa locomotiva a vapor
que alguma vez se fabricou
Bebi uns copos no
Pica-Pau, fotografei os jardins do Luso, a praça e até as escolas
Fotografei esta
maravilha da engenharia hidráulica no Rio Macondo.
Não imaginas as coisas que por
lá havia entre a fortaleza de S.Miguel em Luanda e o soldado negro que, no seu castelo
de formigas Salalé vigiava a fronteira, lá longe, na Caianda, no mais longínquo
leste do saliente do Cazombo, bem no meio de África.
Mandaram-me a Luanda em serviço viajei por outra Angola, sem armas nem escoltas desci do comboio Mala e vi um menino negro de mão dada com um menino branco, uma menina passeava por ali, coisas simples, gestos de confiança.
Na verdade foi a minha mulher que reparou neste pormenor,
escondido durante mais de trinta anos, mas vale por mil palavras.
E lá fui a Luanda de autocarro, vendo maravilhas pelo
caminho,
E lá voltei à praia fluvial do Luena e
aos jardins nocturnos do velho Luso
E fui ver os musseques, e as bananas a crescer e os
tchinganges e os fontanários
Lembras-te do Avião do CFB que o Comandante do Batalhão usava como taxi aéreo?
Da Aerangol que levava viveres e correio para todo o Leste de Angola?
Em todos voei, mas o T-6
Harvard era um avião mágico, cheguei a pilotar um deles, ou melhor “segurá-lo” sim!
Por momentos pilotei uma daquelas máquinas
Tudo isto meu caro Guimarães para te pedir, que se um dia
por aí no canto de um qualquer café de aldeia, vires um velho soldado daqueles
que baralhado pela história e mais ainda pelas palavras oportunistas que
exaltaram aqueles outros que em Paris se diziam defensores da liberdade dos
povos e acabaram por entregar os destinos daquele povo aos oportunistas
mandatados pelos grandes interesses internacionais, semeando por ali a barbárie
e a guerra que plantou minas e mais minas onde outrora foram campos onde
crescia o milho e a mandioca...Guimarães! Dá-lhe um grande abraço de
solidariedade de minha parte, e diz-lhe que os heróis desta história não são os
agora auto exaltados Rauis ou Rafaeis e outros Migueis, mas sim ele o soldado
anónimo que sofreu na picada e nas vigílias nocturnas em abrigos duros, para
que meninos pudessem continuar a comer tranquilamente o seu fungi sentados na
esteira que a mamã estendeu. Foram os médicos que ali salvaram vidas,
incansáveis e dedicados, foram os pilotos dos helicópteros, auto apelidados de
Saltimbancos, que resgataram vidas.
Meu caro Guimarães, mandaram-nos a fazer a guerra e eu
sinto que ali garanti a paz, por isso o meu soldado tem de ser respeitado, se
alguma questão houver de ser levantada, falem com o general, ainda que também
ele seja um soldado, mas ele saberá defender-se, ao soldado não deixes que o
humilhe a história, diz-lhe que nada foi em vão e que lá longe, tão longe
naquele infinito Leste de Angola, que as águas corriam já para o outro mar,
levando-as o Zambeze até ao Indico, diz-lhe que um menino graças a ele teve
escola e orgulhoso do seu saber lhe deixou em herança o seu diploma exposto ao
lado da porta nº 29 da sua cubata na rua nº1 do Macondo, foi a sua maneira de
dizer ao velho soldado, Foi graças a ti, que eu tive paz e a minha escola!
Não foi em vão o teu sacrifício!
Não foi em vão o teu sacrifício!
Armando Monteiro.
Alf.Mil.Transmissões BCaç 3831
Bravo chefe Armando mereces um abração de A.A.D.Ramos
ResponderEliminarSOL transmissões BCaç 3831
Os meus parabéns e o meu obrigado pela verdade vertida na narratiova que tive o prazer de ler. Por vezes as palavras parece que saiam da minha boca. Quarenta e seis depois de vir do Leste de Angola nunca li um texto tão verdadeiro e genuíno. Obrigado mais uma vez e um Santo Natal.
ResponderEliminaresta viagem pelas memórias só me permite dizer que em Angola, Guiné ou Moçambique, a presença de todos quantos serviram com os sacríficios inerentes não foi em vão. Eu era jovem, e entre 1966-1972 estive em Angola, o meu saudoso PAI, era militar da Força Aérea e, ainda hoje as descrições que ele fazia a mim e a meu irmão, das passagens por todas estas terras que por aqui aparecem, Henrique de Carvalho, Luso, Cazombo, Cuíto, N`Riquinha, etc, etc, etc, entre evacuações, transportes e outras operações militares, me catapultam para esses cenários que, revejo nestas imagens, nas minhas memórias de PV 2, Dakotas, etc na base de Luanda que "cheirei" nas placas, nos hangares e, magistral, ouvir aquele roncar dos motores, e ainda como ex-militar ( que também fui) no RCMDS nos fins de 70`s, faz com que sempre que passo junto a um memorial evocativo de todos os que por essas terras andaram, a única forma de manifestar o meu respeito é colocar-me por instantes em sentido e fazer a continência que, enquanto militar me ensinaram, anonimamente é o que posso fazer. A vergonha e o desprezo é para com aqueles que traíram, quer os de lá quer os de cá.
ResponderEliminarCaro João Moreira, viva !
EliminarGratos pela sua participação e pelo seu comentário.
Já agora, pode-nos adiantar o nome do seu pai, qual a especialidade e anos que esteve no AB4 ?
Um abraço.
P'los Editores
A. Neves
Gostei de ler o que publicou. Mais, gostei de rever o Mourato, engenheiro militar, que não vejo há quase uma década. Que esteja por cá é o meu sincero desejo. Estivemos juntos no Cazombo. Vou continuar a frequentar as suas memórias - passam a ser um pouco de mim também. Muito obrigado por as partilhar connosco.
ResponderEliminarObrigado, companheiro. O que nos mostra e conta do Leste de Angola, pude eu vivê-lo, embora de forma diferente pois era tropa apeada, no Norte de dessa terra linda de África, nos anos de 63/65. Tambem ali as populaçoes procuravam o nosso apoio, apoio que nunca negàmos, tambem ali existem belezas que encheram os nossos olhos e corações. Vivemos uma guerra que não era nossa, mas a nossa passagem não foi apenas guerra. Vou guardar o seu texto considerendo-o um dos mais belos que por aqui pude vêr. muito obrigado, Armando Monteiro, um abraço de alguem que tambem foi de transmissões
ResponderEliminarMuito bem (d) escrito e soberbamente fotografado. Subscrevo muito do que aqui é dito porque o vivi quase tal e qual. Também um destacamento com um posto e um quimbo. Também junto à fronteira, Rio Cassai. Também a Cameia. Também o Dala. E a escola. No meu caso dos próprios soldados. Fui Alf. Miliciano numa companhia de tropa de Angola, indo eu de cá. Confesso que passado o impacto inicial, afeiçoei-me aos meus soldados e fizemos coisas interessantes junto das populações. Foi 73 e até Março de 74. Antes da grande confusão.
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