sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

MEU CARO GUIMARÃES:


O texto “Os Cavaleiros d`Anhara surgiu como uma revolta contra certos senhores que por aí andam a propagandear as dificuldades que tiveram de passar em Paris, com a mensalidade atrasada...e dizem-se esclarecidos, amigos dos povos, quando na verdade tentavam apenas salvar o traseiro ao conflito. Estou a escrever-te isto com a autoridade de quem contigo por ali andou, sentias que aquela guerra não era contigo, mas como muitos milhares tinhas compromissos sociais e familiares que não te permitiam uma simples retirada para Paris. Isto é particularmente importante quando penso que ambos tínhamos condições familiares capazes de nos apoiarem financeiramente nessa outra aventura.

...na minha terra um desertor dos campos da Flandes, na 1ª guerra mundial só ao fim de 35 anos pôde regressar...

Por outro lado fui convidado para um convívio dos Dragões de Angola, de que faziam parte o esquadrão de cavalaria com quem estivemos na Cameia. Impressionou-me saber que foram aqueles homens os últimos a abandonar Luanda às dez da noite do dia 10 de Novembro de 1975, duas horas antes de ser proclamada a independência, garantindo assim a segurança até ao último minuto. Não seria tão importante assim se não soubesse que todos eles foram de recrutamento angolano, por serem ali nascidos ou criados. Voluntários! A cada um foi questionado se queria partir ou ficar nesse último grupo e ficaram firmes, tenho assim de ter alguma admiração por eles.

Nesse convívio, o primeiro que frequentei depois de trinta anos, apercebi-me quão injusta tem sido a sociedade para com esses e outros milhares de jovens que como nós foram enviados para longe e ali cumpriram a sua missão e hoje andam pelos cantos dos cafés das aldeias envergonhados da missão que tão arduamente cumpriram. Pode-se acusar o sistema político, o soldado tem de ser respeitado, cabe a quem tenha a capacidade, recuperar e louvar esta memória colectiva e ando a ferver com este tema e sinto que algo tenho de fazer. Costumo dizer que não sou bélicista porque fiz a guerra, não sou pacifista, porque tenho medo da guerra.

Por mim foi também uma experiência humana enriquecedora, no sentido em que nunca tive uma experiência negativa na minha vida, tive sim algumas experiências que me custaram muito. Por isso e tentando rememorar a situação cá vou tentando reanalizar a situação que me levou até ao Macondo...

Se há coisas de que estou consciente é que nunca tive feitio para ser militar, um dia mandaram-me comandar uma companhia, precisamente a companhia sedeada na Calunda, bem lá no centro do saliente do Cazombo e a uma altitude superior a 1700 metros. 
Não sei se consegues imaginar-me nessa situação, mas no dia seguinte às oito da manhã lá estava eu com a barbinha feita a tentar manter as aparências. Estava consciente de que aquele grupo de homens, em caso de conflito esperava que eu o “seu comandante” tomasse as decisões certas, que garantisse a segurança e a vida daqueles homens que esperam isso mesmo do líder...e eu não me tinha oferecido para ali estar...
É costume dizer-se que por um sorriso vale a pena, hoje ao rever estas imagens, este sorriso, apesar de tudo este bebé rechonchudo penso que não foi em vão o tempo que por ali passei, sentia que a população se sentia protegida e muitas vezes me vinha dizer “anda bandido aí nos lavra a roubar comida”, Macondo, bem lá no fundo do Saliente do Cazombo foi onde passei os últimos quatro meses.
E muitas vezes me recordo desta passagem para a minha coutada privada para lá do rio Macondo. Ao ler hoje um pouco de história, ao saber que os portugueses ocuparam esta zona à menos de 100 anos, zona de disputa relacionada com o Mapa cor-de-rosa e também por causa da questão do Barotze. É que toda a província do Moxico faz parte já da bacia hidrográfica do Zambeze, da África oriental.

Eram as ideias da época, mas acima de tudo ideias de quem pensava em grande, vemos hoje a juventude portuguesa a admirar Cristóvão Colombo, porque a Coca-Cola o promove como o grande navegador, quando não passou de um subproduto da aventura marítima dos portugueses, em nada se podendo comparar com o feito de um Vasco da Gama e outros. Há demasiados carneirinhos de animação, que se julgam originais...sem ideias próprias, eternos risonhos amorfos, “os iluminados”.
O Macondo vem nos mapas, fica ao sul do Saliente do Cazombo, bem lá no Leste de Angola. Era apenas isto um posto administrativo à esquerda, um pequeno quartel à direita e uma pequena sanzala, era o destacamento mais a leste de Angola, e no entanto até um ministro zambiano por aqui passou...coisas secretas, planos a decorrer...estávamos em princípios de 1973.

Uma pequena sanzala onde morava uma população tranquila e é por isso que muitas vezes me recordo dos bons tempos que por ali passei. Apenas uma vez fiquei atónito quando na ausência do chefe de posto, me vêm pedir autorização para fazer batuque, porque razão eu um europeu no meio de África teria de estar a autorizar ou não a fazer batuque? Claro que adormeci com o troar dos tambores africanos.
Caçando Javalis com o meu companheiro José Mwoca à minha esquerda, elementos da população armados para auto defesa, as armas eram Mauser de 1904, tendo gravado nos canos D. Carlos I Rei de Portugal e dos Algarves... e era com eles, pisteiros extraordinários que corria as matas à volta do quartel. Os javalis eram tantos que atacavam as lavras de noite. Vês! Nós confiávamos-lhe as armas...

Fala-se muito do pouco que os portugueses por ali fizeram, por mim fico a olhar para esta escola e à sua localização, lá, muito mais longe que o “depois de” havia uma escola, um professor, um posto de enfermagem, que funcionava no quartel, não pretendo com isto defender o “sistema” então vigente, mas mostrar que alguma coisa se fez, coisas de que nos podemos orgulhar, havia boa vontade, outras razões, a história que as discuta.
Ainda hoje não me canso de olhar para este “diploma” que o Zeca António resolveu expor na parede da sua cubata, o seu diploma de 2ª classe e penso que mais que a guerra para onde me mandaram, por ali garanti a paz, ali permiti que outros Zeca António tivessem a sua escola e eu tenho muito orgulho em ter contribuído para isto e gosto de espetar este diploma na cara de muito boa e convencida gente...

Se juntares a isto alguns dos mais belos pôr de sol que alguma vez vi na minha vida, o que de alguma forma compensava as frustrações por que passámos, bem diferentes daquelas outras de que se queixam hoje em livros dramáticos aqueles outros esclarecidos “amigos dos povos”...Refugiados em Paris...
Mas houve outras compensações encontrei outras gentes e um campo fotográfico que se estendia de coisas simples como este moinho que seria quiçá a maior glória e alegria de um arqueólogo, mas que consegui fotografar “a funcionar”, captando o movimento daquelas mãos moendo o massango...dez mil anos de história neste balançar de mãos e um eterno sorriso nos lábios...

E ainda uma piscina privada com água corrente, pois foi construída em cima de uma nascente, vendo-se borbulhar a areia no fundo, é caso para pensar que nem tudo foi tempo perdido por ali. Falta expor o segredo do Macondo, um plano secreto para o futuro de Angola, em que participei activamente desde o Luso. Quem o sabotou?

Mas voltemos aos Cavaleiros d`Anhara em Agosto de 1971. Apesar de todas as contradições foi uma experiência única. Mais uma vez esta imagem contradiz algumas coisas que vão dizendo sobre aquela guerra...nunca mais esquecerei um comentário recente de um jovem de 40 anos. Mas há soldados pretos aqui misturados...”

Lembro-me que o “Rapaz Amaro” o médico veterinário estava ali contrariado.
A mulher estava à espera do primeiro filho, tinha acabado o tempo e lá estava ele a tratar dos cavalos, longe da esposa com quem gostaria de estar nesses momentos. Mas chegou a tempo e a menina lá nasceu com a sua presença, cheguei a conhecer a menina e a mãe, formada em economia, nunca mais soube nada deles... 

Enfim noutros tempos poderíamos ter tido outras condições e ter ficado nas instalações turísticas do Parque Nacional da Cameia. Chegámos lá tarde de mais, ou cedo de mais, já que parece que estão a tentar recuperar o parque. Sabes que mais, apesar de tudo não deixei de andar por lá a fazer turismo...hoje rio-me ao imaginar-te a contar estas coisas aos netos...
Mas sim fiz algum turismo, muito voei naquelas longínquas terras, de onde trouxe histórias para contar. Começaria por esta vista aérea das quedas de Chafinda. Um dia mandaram-me lá fotografar isto mais de perto e fui...e cheguei a estar atrás daquelas quedas, afinal todas as quedas de água têm uma caverna por trás, Chafinda a tão bela, emocionante, traiçoeira e perigosa Chafinda...

E fui também às quedas do Dala que sobrevoei em Helicóptero

E fotografei Lagos e florestas encantadas

E as flores da Acácia Rubra

E as flores da Mangueira e flores selvagens que cresciam por lá

E fui à praça do Luso, a ver como era e vi torrar ginguba ali mesmo, orgulhosa uma mamã passeava a sua filha enquanto procurava Tuqueia e Bagres secos da Cameia

Na verdade não foram só os cavalos que vi por lá



Andei a cavalo na Cameia, voei nos Allouete III e nos T-6 Harvard, nos Noratlas ou Barriga de Ginguba, a jacto e hélice, atravessei o Zambeze em Zebro na Lumbala

Viajei para Teixeira de Sousa no Mala puxado por uma locomotiva a vapor, uma NONA, com serviço de restaurante de primeira classe, fotografei em Cangumbe uma GARRATT a mais poderosa locomotiva a vapor que alguma vez se fabricou

Bebi uns copos no Pica-Pau, fotografei os jardins do Luso, a praça e até as escolas

Fotografei esta maravilha da engenharia hidráulica no Rio Macondo.

Não imaginas as coisas que por lá havia entre a fortaleza de S.Miguel em Luanda e o soldado negro que, no seu castelo de formigas Salalé vigiava a fronteira, lá longe, na Caianda, no mais longínquo leste do saliente do Cazombo, bem no meio de África.


Mandaram-me a Luanda em serviço viajei por outra Angola, sem armas nem escoltas desci do comboio Mala e vi um menino negro de mão dada com um menino branco, uma menina passeava por ali, coisas simples, gestos de confiança.

Na verdade foi a minha mulher que reparou neste pormenor, escondido durante mais de trinta anos, mas vale por mil palavras.
E lá fui a Luanda de autocarro, vendo maravilhas pelo caminho,



E lá voltei à praia fluvial do Luena e aos jardins nocturnos do velho Luso


E fui ver os musseques, e as bananas a crescer e os tchinganges e os fontanários

Em dias de festa, no dia a dia, misturado no meio de um povo com formas de viver diferentes, com cultura diferente, mas onde não me senti estrangeiro, nos Bairros de Benfica, Espirito Santo ou Mandemboa, a todos corri com a minha mini-Honda.
Lembras-te do Avião do CFB que o Comandante do Batalhão usava como taxi aéreo? 
Da Aerangol que levava viveres e correio para todo o Leste de Angola?

Em todos voei, mas o T-6 Harvard era um avião mágico, cheguei a pilotar um deles, ou melhor “segurá-lo” sim! Por momentos pilotei uma daquelas máquinas

Tudo isto meu caro Guimarães para te pedir, que se um dia por aí no canto de um qualquer café de aldeia, vires um velho soldado daqueles que baralhado pela história e mais ainda pelas palavras oportunistas que exaltaram aqueles outros que em Paris se diziam defensores da liberdade dos povos e acabaram por entregar os destinos daquele povo aos oportunistas mandatados pelos grandes interesses internacionais, semeando por ali a barbárie e a guerra que plantou minas e mais minas onde outrora foram campos onde crescia o milho e a mandioca...Guimarães! Dá-lhe um grande abraço de solidariedade de minha parte, e diz-lhe que os heróis desta história não são os agora auto exaltados Rauis ou Rafaeis e outros Migueis, mas sim ele o soldado anónimo que sofreu na picada e nas vigílias nocturnas em abrigos duros, para que meninos pudessem continuar a comer tranquilamente o seu fungi sentados na esteira que a mamã estendeu. Foram os médicos que ali salvaram vidas, incansáveis e dedicados, foram os pilotos dos helicópteros, auto apelidados de Saltimbancos, que resgataram vidas.

Meu caro Guimarães, mandaram-nos a fazer a guerra e eu sinto que ali garanti a paz, por isso o meu soldado tem de ser respeitado, se alguma questão houver de ser levantada, falem com o general, ainda que também ele seja um soldado, mas ele saberá defender-se, ao soldado não deixes que o humilhe a história, diz-lhe que nada foi em vão e que lá longe, tão longe naquele infinito Leste de Angola, que as águas corriam já para o outro mar, levando-as o Zambeze até ao Indico, diz-lhe que um menino graças a ele teve escola e orgulhoso do seu saber lhe deixou em herança o seu diploma exposto ao lado da porta nº 29 da sua cubata na rua nº1 do Macondo, foi a sua maneira de dizer ao velho soldado, Foi graças a ti, que eu tive paz e a minha escola!        
Não foi em vão o teu sacrifício!

Março de 2005








Armando Monteiro.
Alf.Mil.Transmissões BCaç 3831

7 comentários:

  1. Bravo chefe Armando mereces um abração de A.A.D.Ramos
    SOL transmissões BCaç 3831

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  2. Os meus parabéns e o meu obrigado pela verdade vertida na narratiova que tive o prazer de ler. Por vezes as palavras parece que saiam da minha boca. Quarenta e seis depois de vir do Leste de Angola nunca li um texto tão verdadeiro e genuíno. Obrigado mais uma vez e um Santo Natal.

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  3. João Moreira23 dezembro, 2015

    esta viagem pelas memórias só me permite dizer que em Angola, Guiné ou Moçambique, a presença de todos quantos serviram com os sacríficios inerentes não foi em vão. Eu era jovem, e entre 1966-1972 estive em Angola, o meu saudoso PAI, era militar da Força Aérea e, ainda hoje as descrições que ele fazia a mim e a meu irmão, das passagens por todas estas terras que por aqui aparecem, Henrique de Carvalho, Luso, Cazombo, Cuíto, N`Riquinha, etc, etc, etc, entre evacuações, transportes e outras operações militares, me catapultam para esses cenários que, revejo nestas imagens, nas minhas memórias de PV 2, Dakotas, etc na base de Luanda que "cheirei" nas placas, nos hangares e, magistral, ouvir aquele roncar dos motores, e ainda como ex-militar ( que também fui) no RCMDS nos fins de 70`s, faz com que sempre que passo junto a um memorial evocativo de todos os que por essas terras andaram, a única forma de manifestar o meu respeito é colocar-me por instantes em sentido e fazer a continência que, enquanto militar me ensinaram, anonimamente é o que posso fazer. A vergonha e o desprezo é para com aqueles que traíram, quer os de lá quer os de cá.

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    1. Caro João Moreira, viva !
      Gratos pela sua participação e pelo seu comentário.
      Já agora, pode-nos adiantar o nome do seu pai, qual a especialidade e anos que esteve no AB4 ?
      Um abraço.
      P'los Editores
      A. Neves

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  4. Gostei de ler o que publicou. Mais, gostei de rever o Mourato, engenheiro militar, que não vejo há quase uma década. Que esteja por cá é o meu sincero desejo. Estivemos juntos no Cazombo. Vou continuar a frequentar as suas memórias - passam a ser um pouco de mim também. Muito obrigado por as partilhar connosco.

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  5. Obrigado, companheiro. O que nos mostra e conta do Leste de Angola, pude eu vivê-lo, embora de forma diferente pois era tropa apeada, no Norte de dessa terra linda de África, nos anos de 63/65. Tambem ali as populaçoes procuravam o nosso apoio, apoio que nunca negàmos, tambem ali existem belezas que encheram os nossos olhos e corações. Vivemos uma guerra que não era nossa, mas a nossa passagem não foi apenas guerra. Vou guardar o seu texto considerendo-o um dos mais belos que por aqui pude vêr. muito obrigado, Armando Monteiro, um abraço de alguem que tambem foi de transmissões

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  6. Muito bem (d) escrito e soberbamente fotografado. Subscrevo muito do que aqui é dito porque o vivi quase tal e qual. Também um destacamento com um posto e um quimbo. Também junto à fronteira, Rio Cassai. Também a Cameia. Também o Dala. E a escola. No meu caso dos próprios soldados. Fui Alf. Miliciano numa companhia de tropa de Angola, indo eu de cá. Confesso que passado o impacto inicial, afeiçoei-me aos meus soldados e fizemos coisas interessantes junto das populações. Foi 73 e até Março de 74. Antes da grande confusão.

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