sexta-feira, 16 de maio de 2014

A PISTA DO DONDO

AM 32 - Toto, foto de João Sousa 

Fazia a minha primeira comissão em Angola nos PV2. 
Como os DO-27 andavam a ter muitos acidentes, o comandante resolveu colocar alguns pilotos de PV2 a voar também os DO-27. Foi assim que eu, o Pessanha, o Eiró Gomes, o Ferreira Pinto etc, começámos a voar as duas máquinas.
Um dia, estava eu a fazer um destacamento no Toto com o cabo mecânico Palhais quando, por volta das 5 horas da tarde, chegou um pedido de evacuação no Vale do Loge.
A mensagem que o R/T me entregou tinha prioridade zulu, ou seja; tinha que executar a missão ainda que chovessem picaretas. Mas não era o caso. Havia nuvens baixas, mas nada que dificultasse a missão.
Vale do Loge
O Palhais estava a capotar o avião quando eu lhe disse que tínhamos uma evacuação. Tirou a capota que já tinha colocado no motor e lá fomos em direcção ao Vale do Loge. Já previa que parte da viagem seria em vôo nocturno. Não tinha problemas, eu gostava de fazer instrumentos. Até ao Vale do Loge a viagem era curta e fi-la a baixa altitude.
Quando lá cheguei não vi ninguém na pista, o que achei estranho. Fiz duas ou três passagens sobre o quartel e aterrei. Fumei vários cigarros antes que aparecesse alguém. Depois lá vi um jeep vindo na nossa direcção. Lá dentro vi dois militares, mas nenhum deles me pareceu ferido ou doente. Então perguntei:
- Onde é que estão os feridos?
O condutor olhou para mim e disse:
- Não são feridos. É a esposa do nosso capitão que vai ter bebé a Luanda.
Boa, pensei.
Ficámos a aguardar e já a noite caía quando chegou outro jeep com o snr. Capitão, a esposa e um filho pequeno. Cumprimentámo-nos e logo subiram para o avião. Um dos que chegou no primeiro jeep pediu se o podia levar, pois ia para consulta externa em Luanda.
Descolei e subi para seis mil e quinhentos pés. Quando atingi a altitude já a noite era bem escura até porque estava a voar dentro de nuvens. A certa altura principiou a chover e a turbulência ficou moderada. Quando liguei a rádio-bússula a agulha tinha oscilações enormes. Deixei que o tempo passasse, mas não melhorou. A certa altura o Palhais virou-se para mim e disse que lhe cheirava a maresia. Fiquei preocupado. Será que já estava a voar em cima do mar? Pelo tempo de vôo, devia estar a chegar a Quicabo. Mesmo assim, desviei um pouco para a esquerda. Chamei a torre de Luanda e eles responderam. Quando pedi assistência, disseram-me que a radial que estava a aparecer só podia estar errada. Nem falaram qual era a radial. Passado uns minutos deixei de ter contacto com eles. Quando já tinha a certeza de ter passado a zona montanhosa, comecei a descer. Reduzi o motor, a velocidade, meti 15° de flaps e acendi o farol de aterragem. À minha frente via a projeção da luz nas nuvens. A certa altura a luz sumiu e assustei-me. Só depois é que percebi que tinha saído das nuvens. Voltei à linha de vôo. Olhei para a frente e para a direita na esperança de ver as luzes de Luanda ou outras que me pudessem orientar. Nada! Tudo era escuridão completa. 
-Devemos estar em cima do mar. – falou o Palhais.
- Se estivéssemos no mar via a fosforescência dos carneiros lá em baixo.

Olhei para a esquerda e, lá bem longe, avistei luzes elétricas. Nem pensei mais. Voltei o avião naquela direção. À medida que me aproximava, o número de luzes aumentava. Só podia ser uma cidade grande. Já mais próximo, vejo o reflexo das luzes na água. O meu cérebro trabalhava a mil, tentando saber que cidade era aquela. Já mais perto, percebi que aquela água só podia ser de um lago. Cada vez mais intrigado, tentei pensar com calma, que era o que me ia faltando. Muitas luzes, um lago perto de Luanda, era o quê? Nada! Não valia a pena dar mais voltas à cabeça. Tinha bastante combustível e pensei que, sobrevoando a cidade alguém poderia ter a idéia de me indicar uma pista. Dei voltas e mais voltas e fui acendendo e apagando o farol de aterragem para chamar a atenção. Tinham passado mais de vinte minutos, quando vejo alguns carros a reunirem-se. 
Disse para o Palhais:
- Estamos safos! Eles vão iluminar-nos a pista.
Barragem de Cambambe
Mais carros se juntaram e começaram a andar. Andaram, andaram e andaram. O tempo ia passando e maus pensamentos começaram a apoderar-se de mim. Sei lá para onde é que eles iam! Podiam até, ir para alguma festa ou outra coisa qualquer. Mas uns minutos depois, os carros começaram a tomar posições de um lado e do outro daquilo que era, concerteza, uma pista. Colocaram-se em diagonal de modo que me permitia ver a pista. Quem os colocou assim sabia o que fazia. Fiz uma passagem baixa para fazer o reconhecimento da pista e voltei a subir para aterrar. Percebi que a pista era de terra e bastante curta. Pedi ao Palhais para avisar os passageiros que íamos aterrar numa pista alternativa, que apertassem bem os cintos e que o snr. Capitão segurasse o filho no colo. Quando já estava em aproximação, vi que, lá em baixo, estavam a acender fogueiras junto à pista. Pior, pensei. Se houvesse um despiste podia ir parar a uma fogueira. Mas não, fiz uma aterragem curta, perfeita. Uma ambulância aproximou-se do avião já parado. Várias civis e alguns militares também se aproximaram. Descemos do avião, fui cumprimentado por várias pessoas e logo que me foi possível perguntei discretamente a um militar:
- Que pista é esta?
- É a pista do Dondo.
Logo todas as minhas dúvidas se desvaneceram! Claro, se ali era a pista do Dondo, o lago que eu sobrevoei durante tanto tempo era a barragem de Cambambe. Foi para lá que nos levaram num dos jeeps.
Um capitão disse-me que o meu comandante queria falar comigo logo que possível e foi a primeira coisa que fiz logo que cheguei às instalações da barragem. Quem me atendeu foi o oficial de dia às operações.
- Oh pá está tudo bem? Tu nem sabes do que te livraste! Está aqui o General Moura dos Santos, que é pai da senhora que evacuaste, e está farto de gritar aqui dentro. Dizia que se lhe matasses a filha, ele te matava a ti. Espera que vou chamar o comandante que está aqui ao lado com o general.
Dava-me vontade de rir! Parece que o snr. General não sabia que, se a filha morresse, eu também estava morto. Falei com o comandante que foi extremamente simpático e pedi para que outro avião fosse ao Dondo no dia seguinte e levasse combustível. Dali fui comer alguma coisa e beber uns whiskys. Dormi que nem um santo naquela noite. No dia seguinte apareceu o Eiró Gomes, infelizmente já falecido num acidente de Nord em Tancos, que deixou o combustível e levou os passageiros.

Com este incidente, ganhei vários amigos: Os dois irmãos Generais Moura dos Santos, a filha de um deles D. Graça Leandro e seu marido cap. Garcia Leandro que encontrei em Timor na minha 1ª.comissão.

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1 comentário:

  1. Gostei de ler o seu texto. Também já fiz o Vale do Loge como pendura de alguém e na altura fiquei com a ideia de que voávamos entre catedrais góticas - devo ter visto tudo mal. Muito obrigado pela partilha da sua experiência.

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