quinta-feira, 3 de novembro de 2022

UMA OPERAÇÃO POUCO ORTODOXA (TRAGÉDIA BOMBOKO)

O Quatro de Fevereiro de 1970
Este episódio foi escrito antes de ter tido conhecimento da obra "Tragédia Bomboko", escrita por um ex-combatente do MPLA, João Jorge Lucas "Zengo".
Depois de o ler, decidi incluir algumas passagens dessa obra, onde são descritos os confrontos desse dia, por alguém que os viveu do outro lado.
Um pouco romanceado e menos preciso no encontro com helicópteros, serve todavia para confirmar o essencial do presente episódio.
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Ora, se a sua missão inicial tinha que ser cumprida, fosse qual fosse o seu preço e sacrifício dos seus componentes,... Ela não se limitava somente no abastecimento e reforço à Primeira Região político-militar do MPLA. Ela agora, consistiria, acima de tudo, em garantir esse reforço e abastecimento através duma rota mais ou menos menos segura que ligasse o Leste ao Norte (Nambuangongo).
Essa rota seria a rota "AGOSTINHO NETO". É na materialização dessa decisão que "Bomboko" se choca com o inimigo, na Baixa de Kassange, perto de Kitapa, na Província de Malange, ficando desbaratado.
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De repente, um helicóptero no horizonte e mais um, dançando no ar. Tiros na retaguarda! Bombardeamento e fogo intenso. "Os terroristas". Os fora-da-lei (37)tinham sido localizados e a sentença era de abate-los (38), ou extermina-los.(39) (sic)
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Corpos, cadáveres de combatentes trespassados de balas submergindo!
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Cento e dez camaradas tombavam ali em terras de Malange...
Desbaratado que foi "Bomboko", apunhalando-se e suicidando-se a tiro, "Kitwe", chefe de operações e o comandante "Suka Hata" (Veneno)..."Zengo" depois de atingido na cabeça, na vista, no peito, na perna... por um helicanhão "Certa" e "Mabiala" são capturados. Outros sobreviventes...em número não superior a vinte... conseguiram voltar...outros seriam capturados um mês mais tarde, quando já cadavéricos...tentavam...o ponto de partida...
"O MPLA sofre, então, o maior revez de todos os tempos, a maior derrota da sua história!"
.../...
In, Tragédia Bomboko, de João Jorge Lucas, "Zengo",
ex-combatente MPLA.

Uma missão inopinada
Aconteceu no dia comemorativo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
Quatro de Fevereiro de 1970!
Neste episódio são descritas situações por nós vividas, durante o desenrolar de uma operação, efectuada em  helicópteros AL III da Esquadra 94. Desencadeada a partir da BA9 na madrugada desse dia, voou-se para a Quitapa, para interceptar uma numerosa coluna de 
guerrilheiros do MPLA, veio a terminar no Luso(40), passadas duas semanas.
Uma coluna constituída por mais de uma centena de guerrilheiros e carregadores que transportavam armamento, infiltrou-se no então território nacional, através da longínqua fronteira Leste junto a Caripande, localidade do saliente do Cazombo, onde o rio Zambeze deixa Angola para entrar na Zâmbia.
Segundo a citada obra, na sua página 108, o grupo contava mais de 80 combatentes...
Tinham como objectivo primário atingir e instalar-se no distrito de Luanda, na chamada "Zona Norte", designação que, operacionalmente, se dava ao Comando da Zona Militar Norte e englobava os distritos de Luanda, Cuanza Norte, Huíge, Zaire e Malange.
Seria uma marcha de mais de mil quilómetros e meses de sacrifícios, enfrentando todos os perigos que uma deslocação daquela natureza implicava, mas que, acima de tudo, não podia ser detectada.
Foram interceptados na baixa do Kassange, perto da Quitapa província de Malange, quando tinham percorrido 2/3 de percurso, que se adivinha tenha sido penoso. Viram-se confrontados com as enormes dificuldades criadas pela travessia do rio Cuango, que, nessa época do ano, transborda das suas margens, alagando grandes extensões daquelas planícies algodoeiras.
...
Foi perante as dificuldades criadas pelos movimentos rivais, que o MPLA, sob pena de cair em descrédito, perante os apoios internacionais, escolheu a hipótese que entendeu como menos má.
A sua infiltração, a partir da Zâmbia, podia ser mais fácil sob o ponto de vista orográfico e até de segurança física, pois era uma área plana, aberta e de muito grandes dimensões, onde facilmente podiam escapar à vigilância das Forças Armadas Portuguesas, que não tinham efectivos que pudessem cobrir tão grandes extensões de fronteira.
O movimento seria fácil de iniciar, mas o percurso seria longo e terrivelmente penoso!
Efectuar um movimento logístico desde a Zâmbia até ao Norte, que lhes permitisse instalar uma base militar tão perto quanto possível da capital,
 era um feito gigantesco.
Em caso de sucesso, poderia mes
mo transformar-se num enorme êxito militar e político, e sob o ponto de vista dos dirigentes do MPLA, vital para a sua credibilidade como movimento de libertação.
Visava, esta "longa marcha" do "Destacamento Bomboko" que na  opinião dos planeadores do MPLA escaparia à vigilância dos "tugas", como pejorativamente éramos apelidados:
• Instalar-se nos distritos do Cuanza e de Luanda, nos quais não tinha, até aí, implantação significativa.
• Criar ao longo do percurso, pequenos destacamentos militares com depósitos de armamento, servindo de futuros pontos de apoio logístico aos seus deslocamentos.
• Estender a sua influência no Leste aos distritos do Moxico e Lunda e Malange tentando captar as populações para o seu lado.
Era a sonhada rota Agostinho Neto!
"... É na materialização dessa decisão que "Bomboko" se choca com o inimigo, na baixa de Kassange, perto de Kitapa, na Província de Malange, ficando desbaratados..."(42)
Com esta dissertação em jeito de introdução pretende-se deixar claro que, em Angola, a actividade de guerrilha de qualquer dos movimentos foi sempre menos activa que em Moçambique ou na Guiné.
Permite compreender, melhor, o episódio que a seguir se narra; uma operação iniciada no distrito de Malange, a nordeste da Quitapa, levada a cabo por três Alouette III da Esquadra 94 contra a já referida coluna Bomboko, a caminho do seu objectivo final e terminada na Lunda, com a apreensão de todo o armamento, que foi sendo deixado ao longo do percurso.
É, hoje, comum reconhecer o trabalho importante que a Pide-DGS desempenhou no campo das informações de combate, durante o desenrolar da guerra em África.
Era, também, sabido que, após a divulgação de informações passadas às entidades militares, as operações daí resultantes redundavam, normalmente em insucessos, dado o tempo que se perdia em planeamentos de guerra clássica.
É sabido, também, que a guerrilha tem que ser combatida com guerrilha. Há que explorar, de imediato, toda a informação que justifique 
uma intervenção, já que uma das principais características é a sua permanente mobilidade. Aquilo que é importante agora, não o será amanhã.
De um modo geral, se se esperava pelos planeamentos dos "teóricos", quando lido o relatório da operação, quase sempre constava na alínea dos resultados:
- "Encontrado o objectivo recentemente abandonado"!
Conclusão à qual, em tom jocoso, acrescentávamos como comentário:
"feita prisioneira uma "velha paralítica e recuperada uma catana sem cabo".
A PIDE-DGS em Luanda, tinha conhecimento deste importante movimento que o MPLA planeava e acompanhou, de perto, o posicionamento da coluna ao longo do território, desde que iniciou a sua progressão na Zâmbia, em Dezembro de 1969. Admito como muito provável, que haveria elementos infiltrados no seio das suas estruturas.
Porque se tratava de um acontecimento de grande importância para o combate à guerrilha, o director da DGS em Luanda, São José Lopes, reteve essa informação para a fornecer, apenas quando o entendesse oportuna para uma intervenção imediata. Esse momento haveria de ser, como é natural, quando a coluna estivesse mais vulnerável, já que eram conhecidos, o seu destino, o percurso mais provável e as dificuldades que iriam enfrentar perante as cheias dos rios a transpor, nomeadamente o importante Cuango.
Seria nessa altura que deixaria "cair" a informação. E não lhe seria difícil obter a concordância do então Comandante-chefe, General Piloto Aviador Anacoreta de Almeida Viana, para essa medida de segurança evitando assim a "normal" fuga de informações e consequente insucesso de mais uma operação planeada a nível de comandos dos ramos!
Tratava-se, apenas, de localizar e destruir uma coluna de guerrilheiros!
Não seriam precisos, como veio a ser constatado, grandes planeamentos.
O percurso da Coluna
Entraram em Angola, no saliente do Cazombo, junto a Caripande(43), progredindo para Noroeste atravessando a imensa "chana" da Cameia, até às imediações do Lumege.
Constituíram o seu primeiro destacamento e respectivo paiol de armamento nas, imediações de Dala localidade na estrada que ligava Henrique de Carvalho, (onde se localizava o Aeródromo Base nº.4), ao Luso, junto do caminho-de-ferro e onde se situava o Comando Militar Leste.
Pretendiam, a partir daí, controlar essa importante via de comunicação entre as duas mais importantes concentrações militares do Leste.
Através das informações que constantemente ia obtendo, a DGS constatou, a dada altura estarem reunidas um conjunto de particulares coincidências que aconselhavam a intervir.
Assim:
• O grupo estava a atingir a região nordeste da Quitapa, que nessa época estava completamente alagada pelas cheias.
• Aproximava-se o dia 4 de Fevereiro, data que o MPLA reivindicava para si como o início da luta armada.(44)
• O director da DGS em Luanda conhecia o valor do Major Almada, Oficial de Operações da Base Aérea nº. 9, e em acumulação, comandante da Esquadra 94.
• Este, por sua vez, além da ousadia e coragem que o caracterizavam, tinha também, pelas funções que desempenhava, a autonomia para desencadear uma acção com helicópteros.
Contactado em tempo e dada a disponibilidade de helicópteros nesses dias, foi opinião dos planeadores que, mantido o segredo, a acção teria êxito garantido!
E se assim fosse, seria desferido um rude golpe no moral bastante em
baixo do MPLA! E logo no seu dia comemorativo.
A Acção
No dia 3 de Fevereiro o Major Almada chamou por volta das 17h00 à sala de operações da Esquadra 94, dois pilotos, o Tenente Queiroga e o Furriel Carmo Rocha, três mecânicos, e o "Chefe da linha da frente" para fazer um curto "brieflng". 
Utilizando o seu estilo telegráfico peculiar, atirou:
• Maçaricos(45), amanhã descolagem com 3 máquinas; um canhão e dois transportes...!
•Mínimo de vinte e cinco horas de voo disponíveis para cada máquina...!
- Destino: Algures em Angola...
- Tempo de permanência: logo se vê...!
Normalmente esse tempo podia ser calculado pelo seu indicador habitual, e que consistia no minimo de cuecas que aconselhava a meter no "kit-bag"(46). E variava pouco: Um ou três pares!
- "Rodas no ar" às 06h00!
- Três pares de cuecas!
Aí estava definido o tempo da saída! Seriam pelo menos duas semanas.
De facto, regressámos 13 dias depois!
"Por uma questão de parcimónia quanto à utilização da roupa em operações, devo confessar que nunca me faltou! Usava para esse efeito o método da "rotação" ou seja, a peça usada hoje, vestida oito dias depois até parecia lavada e engomada"!
O briefing estava a chegar ao fim.
- Esta matéria é... Confidencial!
Uma pausa breve para interiorizarmos e finalizou:
- Porque não há dúvidas, até amanhã!
E foi saindo!
Era uma situação a que já íamos estando habituados com o novo comandante de esquadra. A informação era a necessária para o momento.
Não havia lugar para dúvidas! Havia sim que preparar a missão, pelo que estas instruções tinham que ser descodificadas por cada um.
Iríamos estar na Base às 5h00! A descolagem seria às 6h00 e permaneceríamos fora por um período de pelo menos duas semanas.
Confidencial queria dizer que aquele "briefing" não tinha existido! Não podíamos fazer qualquer comentário, família incluída!
Cada um de nós sabia o que teria que tratar para o colectivo!
Como mais antigo a seguir ao Major Almada, competia-me tratar da coordenação do transporte. Saber quem precisava de transporte, onde, a que horas e fazer chegar o pedido ao oficial de dia às operações.
Na manhã seguinte, "mata-bicho" tomado, agora frente a um café no bar da Esquadra, enquanto os mecânicos faziam os últimos preparativos, o Chefe deu uma ideia do que ia ser a nossa missão!
Íamos tentar interceptar uma coluna de  guerrilheiros na região de Malange, acrescentando que a informação era "A1", ou seja, absolutamente certa.
Não tinha, por agora, mais pormenores para nos fornecer a não ser que, até entrarmos em acção, o assunto continuava a ser confidencial.
Queria dizer que não faríamos comentários com mais ninguém, mecânicos da Esquadra incluídos:
- Mas, atenção! Se a intercepção da coluna não tiver sucesso, o assunto ficará confidencial para sempre! 
Só mais tarde entendi esta última determinação.
Estava a proteger a origem de informação e a pouca ortodoxia que tinha sido posta no despoletar da missão!
Se tivesse sucesso, como veio a ter, ninguém faria perguntas sobre o procedimento seguido.
Como não podia deixar de ser, descolámos na hora planeada!
Rumo a Leste ao longo da estrada do Catete, Zenza do Itombe, embrenhámo-nos na bruma que envolvia os morros de Golungo Alto, e que antecediam Salazar(47). Já no planalto, passámos Lucala e aterrámos em Malange para reabastecer. Apenas 200 litros, significava que iríamos para perto e chegaríamos com disponibilidade para transporte imediato de pessoal.

Descolámos e pouco depois, aterrávamos por volta das 9 horas na Quitapa, sede de uma Companhia de Infantaria, que iria ser a nossa base logística. A nossa chegada, pôs a Unidade em desassossego, com a presença de tão inusitada visita. Claro está que, não sendo habitual a aterragem de três helicópteros naquela localidade, logo os militares começaram a questionar-nos se era para fazerem uma operação.
Uma vez aterrados, definiu-se que a quantidade de combustível em cada um dos transportadores seria de 250 litros, o que permitia o melhor compromisso entre autonomia e carga disponível! Isto significava 1h e 15 m de voo com cinco militares armados.
O Major Almada reunido com o Comandante de Companhia deu-lhe conhecimento da nossa missão e sem entrar em grandes detalhes, pediu que disponibilizasse dez homens, com equipamento aligeirado, para uma primeira vaga e que mantivesse um grupo de combate preparado para eventual reforço.
Era assim que as coisas aconteciam normalmente com ele. Simplicidade, eficácia e um gosto pelo perigo.
A disponibilidade do Comandante da Companhia foi total e nem sequer lhe ocorreu perguntar por que razão não tinha sido avisado pelo seu escalão hierárquico.

Ficámos, nesse momento a saber que iriamos fazer um REVIS/ATIR(48), voando em formação aberta, transportando cada um, cinco militares armados apenas com G-3.
Em linguagem comum, iriamos procurar aquela coluna de guerrilheiros e carregadores, e que o local provável, segundo as suas últimas informações seria a nordeste da Quitapa nas margens do rio Cuango. Esta última informação era necessária para determinar um rumo inverso, e eventual transporte de uma segunda vaga.
O frenesim da tropa era bem visível à espera, a todo o momento, da ordem de embarque. Mas o seu papel haveria de estar guardado para mais tarde. Primeiro, havia que localizar os "turras"! E assim, descolámos com dez militares, cerca de uma hora depois da chegada. Voámos para nordeste numa formação larga para maior segurança e ampliando a área coberta de reconhecimento visual. A ligação rádio garantia a proximidade entre os três helicópteros.
Depois de passarmos uma pequena linha de alturas, deparámos com o rio Cuango. O terreno abria-se num imenso vale, muito plano, com tufos de árvores, de onde em onde, completamente inundado pelas águas do rio que tinha saltado das suas margens. Em algumas ilhotas conseguiam-se ver grupos de antílopes, refugiando-se da cheia.
Cerca de vinte minutos após a descolagem a voz do chefe soou pelo rádio:
- Há aqui gajos debaixo das árvores! Circulem!
Este reporte deu-me a certeza de que o Chefe conhecia a localização provável do grupo. Ao fim de vinte minutos de voo, sem qualquer mudança de rumo, avisou pelo rádio ter avistado pessoal. Eram, seguramente, as coordenadas fornecidas pela DGS!
Quando olhei, já as tracejantes do canhão indicavam que o nº.1 tinha aberto as hostilidades! Aproximámo-nos, iniciando um círculo largo para garantir alguma segurança, pois não estávamos armados. E fomos tendo um retrato falado do que ia acontecendo, com aquela voz aparentemente calma que o Chefe "vestia" quando em situações de grande tensão.
Durante cerca de longos dez minutos, não consegui visualizar o que se estava a passar mas o Chefe ia referindo que "era muita gente". O fogo do canhão era intenso e visível Mas de terra também ripostavam. Foi então que, para amenizar a tensão, saiu como era costume, a primeira "graça" do Chefe:
- Estes gajos têm tendência para "mergulhadores"!
O fogo do canhão continuava e, só a dada altura, reparei que a corrente do rio arrastava gente que tentava nadar. Aquele pessoal fugia para dentro da corrente forte do rio, numa tentativa de escapar aos tiros. Optavam por um possível afogamento ou refeição dos crocodilos, para evitar a morte ou a humilhação da prisão.
Foi quando vi o pessoal a tentar flutuar que entendi a ironia do Chefe acerca dos "mergulhadores".
Ao fim de mais alguns minutos, ouviu-se pelo rádio:
-Fui atingido!
Disse-o no mesmo tom de voz com que teria dito: "Está calor".
Não pude deixar de quebrar a disciplina rádio para perguntar:
- Tudo bem, com o "Mosca 1"?
Percebendo a nossa angústia, no mesmo tom, respondeu!
-Tudo bem maçaricos! Foi só a máquina!
Foi, com algum alívio, que ouvi esta resposta e não a tradicional frase:
"Em voo, o asa só fala quando é chamado ou, está em emergência"!
Era esta a disciplina e assim tinha que ser, no desempenho de uma actividade, onde toda a atenção era necessária e o supérfluo apenas servia para distrair! Mas, desta vez, tinha compreendido a nossa natural ansiedade.
-Já há gajos de braços no ar! Vamos ver se conseguimos um local para largar o pessoal, sem os afogar.
Embora houvesse alguma preocupação, quanto às condições do local, havendo guerrilheiros de braços no ar, a sua frase não deixava de ser mais uma pequena ironia. Servia para descontrair!
- Preparar para colocar o pessoal. Depois fazem outra vaga.
- "Mosca 2"!- dei o meu entendido.
O local era um conjunto de árvores altas, dispersas, sem grande folhagem que permitia ver, perfeitamente, por baixo delas. Teria que manobrar para a escolha da melhor entrada. Fui preparando, mentalmente, o "briefing" para o chefe do grupo.
Um dos possíveis locais, a cerca de 50 metros daquela gente, permitia a aterragem em simultâneo, o que era bom para reduzir o tempo de eventual reacção. Não seria difícil a colocação, não fosse a incerteza da profundidade da água. Também não podia largá-los muito próximo, dos agora já visíveis guerrilheiros. Podia não ser seguro. Tinha que ser uma decisão tomada já perto do possível local da largada. Uma vez em estacionário, não podia borregar com os homens a bordo, por manifesta falta de potência para ultrapassar o arvoredo. Tinha, também, que assegurar que os homens só saltariam, quando eu gritasse para o fazerem! Decidi, por isso, manter as portas do helicóptero fechadas, até que tomasse a decisão.
Quando, em aproximação ao local em que caberíamos os dois helicópteros, pude dar o "briefing" mais rápido da minha vida!
Premi o botão do rádio para que o n.3 ouvisse, enquanto falava com o chefe do grupo e puxando-lhe pelo ombro para que se aproximasse a sua orelha de mim, gritei-lhe:
- Só abrem as portas depois de eu gritar "saltar"!
- O objectivo é fazer prisioneiros e nada de tiros! Só em auto-defesa!
Há necessidade de informações, e este pessoal está a render-se!
Foi dizendo que sim com a cabeça em sinal de assentimento! Tenho porém que admitir que era mais fácil de dizer do que fazer!
E para o outro piloto:
- "Mosca 3", dá para os dois. Cinco segundos de separação. Mantém as portas fechadas até mandar saltar!
- "Mosca 3".
A três ou quatro metros do ponto de largada, com a certeza que teriam pé, gritei:
-Saltar!
E, de imediato, ouvi o deslizar das portas a abrir.
Era um salto de dois metros, ainda confortável por ser para a água e a altura evitava que as pás do rotor de cauda entrassem na água.
Não dei mais instruções ao "Mosca 3". Como tinha mantido o botão de emissão rádio premido, ouviu o que dissera, e deu, seguramente, as mesmas indicações ao seu grupo! De qualquer modo, seguiriam, por certo, o seu chefe, já em terra. E saímos dali, rapidamente, para fazer o transporte da segunda vaga.


Os que foram largados, na primeira vaga, ficaram apenas com a protecção do heli-canhão.
Uma vez fora dali, percebi que aquele grupo tinha sido apanhado no local mais propício à passagem do rio, mesmo assim, devido à inundação, uma operação perigosa e difícil, dada a quantidade de armamento que tinham de transladar.
Para além das canseiras da já longa caminhada de dois meses, uma cheia de um rio que não se sabia quanto tempo iria permanecer, juntava-se agora um encontro imprevisto com os helicópteros dos "tugas".
Tanta coincidência deixou por certo, muitas dúvidas àquele pessoal, e especialmente ao Comandante da coluna! E foi esta dúvida que mais pesou na decisão que a seguir viria a tomar.
Revia as imagens que a tensão do momento não me tinha deixado interpretar devidamente.
E vi o desânimo, mais que o medo, estampado naquelas caras. Alguns sem armas, outros com elas em bandoleira. Era o sinal evidente de que não queriam combater. Fosse qual fosse a razão, para eles, esta guerra estava terminada.
Soubemos, mais tarde, que admitiram vir a ser dizimados no local e nunca esperaram terem sido poupados. Mas não foi assim! Podia ter que acontecer, mas matar não era a nossa missão!
Quando já voávamos para o transporte de mais dez militares, o Chefe mandou-nos regressar. Tinha concluído com o grupo em terra, que com a rendição do que restava do grupo de guerrilheiros e carregadores, a operação estava acabada. Quando chegámos, aguardavam-nos, serenamente, os dez militares e uns quantos prisioneiros.
Os restantes, entre sobreviventes e mortos no local, tinham sido arrastados pela corrente, com um fim que, facilmente, se depreende para a maioria deles.
No entanto, alguns apresentaram-se ou foram detidos pelas autoridades gentílicas, nos dias seguintes.
No final, em três vagas, trouxemos toda a gente e muito material, tendo um graduado referido que um dos guerrilheiros, quando aprisionado pelos nossos militares, conseguiu empunhar a sua faca de mato e suicidou-se, cortando as carótidas! Soubemos por um dos sobreviventes, ter sido o Comandante militar da coluna, o qual não tendo suportado tamanho desaire, decidiu ali por termo à vida.
Pela atitude desesperada, o meu desacordo! Pela sua dedicação à causa, a minha admiração!
Presto-lhe aqui a minha homenagem de combatente.
"...
Desbaratado que foi "Bomboko" apunhalando-se e suicidando-se a tiro, respectivamente, Kitwe, chefe das operações e o comandante Suka Hata (Veneno)..."'(49)
O guerrilheiro responsável pela localização dos depósitos de armamento deixados ao longo do percurso, foi um dos sobreviventes, tendo-se transformado na figura mais importante da operação. Passou a ser objecto da maior atenção por parte dos pilotos.
Depois de muilo bem conversado, entre uns cigarros e algumas cervejas, anuiu a dar-nos as localizações dos paióis, mas sem referir nomes dos responsáveis locais. Invocou desconhecê-los, e justificou que era o procedimento normal entre eles. Era credível! Por uma questão de segurança, só o Chefe tinha conhecimento dos responsáveis locais. Como o mesmo se tinha suicidado, tinham-se perdido esses elementos para sempre.
Ficou-se a saber apenas, a localização dos depósitos do armamento.
Nada de nomes. Nós não faríamos perguntas sobre os responsáveis da área e ele indicaria todos os locais onde tinha sido deixado armamento.
O acordo foi cumprido por ambas as partes! Complementarmente, fumou sempre quanto quis, e nem sequer faltava quem lhe estendesse um cinzeiro no momento oportuno, para não se desconcentrar quando estava a pormenorizar aspectos relacionados com as localizações dos depósitos de armamento.
• O tratamento dado ao caso, por gente que nada sabia da técnica de interrogatórios;
• a decisão do Major Almada, de fazer a exploração imediata do sucesso daquela operação;
• e a atitude de um prisioneiro que não esperava esse tratamento da nossa parte;
Tudo isto, em conjunto, permitiu apanhar toneladas de armamento.

E o prisioneiro nem sequer precisou de se deslocar aos locais, tal a precisão dos seus esquemas.
Este guerrilheiro regressou a Luanda no fim da operação. Mas não acredito que, após 1975, os seus dirigentes o tenham deixado viver!
Com esta operação, em 4 de Fevereiro de 1970, não direi que se acabou com a guerrilha levada a cabo pelo MPLA, mas estou crente que este "movimento" não deve ter tentado outra operação com esta envergadura.
E também posso afirmar que, durante os treze anos que o conflito durou em Angola, nenhum dos três movimentos - UNITA, FNLA, e MPLA - demonstrou ter força suficiente para causar grandes preocupações às Forças Armadas Portuguesas.


(37), (38), (39) sic
(40) actual Luena
(42) in, Tragédia Bomboko, pag.14
(43) localidade "encostada" à fronteira e onde o Zambeze entra na Zâmbia
(44) Ataque à esquadra de polícia de Luanda
(45) Designação que em Angola se dava aos militares que chegavam de fresco por oposição aos
veteranos! No significado do Major Almada era um tratamento carinhoso para os seus subordinados.
(46) Saco de lona para transporte da nossa roupa e artigos de higiene.
(47) Actual N'Dalatando
(48) Acrónimos respectivamente para: Reconhecimento Visual e Ataque Independente em Reconhecimento.
(49) In, Tragédia Bomboko, pag.14


Nota: o Governo-Geral de Angola tinha regulamentado a atribuição de prémios pecuniários a atribuir ás unidades militares que capturassem armamento ao adversário. Com a captura feita pela Esquadra de helicópteros nesta operação, a atribuição de prémios não pode ser aplicada...Simplesmente porque não havia dinheiro para tanto armamento capturado!

Extraído do livro "Estórias Vividas - Relatos de Guerra de um piloto de helicópteros em África", do General José Augusto Barrigas Queiroga, a quem agradecemos ter-nos permitido fazer esta publicação.


1 comentário:

  1. Acho muito importante não deixar morrer o que passámos durante os anos da Guerra Colonial.

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