quinta-feira, 18 de março de 2021

A DESPEDIDA (FRAGMMENTOS DE MEMÓRIAS)


Vi-o descer pelo carreiro da restolha do Calaia. Cana de pesca na mão direita, cacifo sobre o ombro, andar compassado ao ritmo das irregularidades do caminho; a pesca era o destino. Para as poldras de Baçal ou talvez a represa da Camila.
O Sabor corria-lhe no sangue, nunca estava mais de uma semana sem visitar o rio.
--Não te despedes do rapaz, ouvi minha mãe perguntar enquanto no meu quarto, preparava a mala da viagem.
Já há muito que me ando a despedir dele, ouvi em voz morta de angústia.
Oh homem...nem parece teu…
Beatriz, isto é uma vida danada. O outro já na Guiné, agora este para Angola!
Foi assim que quiseste. Os da D. Ofélia também são gémeos e foi um de cada vez.
Sim, sim, mas prefiro passar dois anos em sofrimento do que quatro em permanente agonia. Não ia aguentar tanto tempo, na incerteza de dias sem sol na alma, nem ter notícias amiúde.
Nossa Senhora dos Montes Ermos há-de protegê-los, estou cheia de fé.
Pois, pois, Nossa Senhora…
Ouvi a porta bater, o som lento das botas a descer as escadas, o ranger do portão que dava para a rua.
António Júlio, vem comer as sopas, chamou a minha mãe, já estão no sítio.
Entrei na cozinha, a malga fumegante com sopas de café com leite eram fiéis ao local, no parapeito da janela da cozinha, que dava para a restolha. Desde os tempos do liceu que era assim. Dali, via os lameiros verdes onde, depois das aulas, jogávamos à bola. Em cima do aparador, o velho rádio dava som a "aprés toi" na voz de Vicky Leandros, ainda fresca pela vitória alcançada no festival da eurovisão desse ano.
Continuei a vê-lo, baixou ao lameiro do Lima e parou. Voltou o rosto e olhou para a janela durante alguns minutos. Sabia bem que eu estava lá. Não fez qualquer sinal, somente parou a olhar!
Eu sei pai, que não gostavas que os teus filhos te vissem chorar. Só uma vez o fizeste diante de nós. Lembro-me do comício, que a oposição ao regime fez em clandestinidade na serração do Martins Novo. Eu estudante , tu um pai cheio de ideais.
Cantámos o hino nacional e saíram-te umas lágrimas de liberdade.
Sei porque saíste sem despedida, sei que não ias à pesca, sei, que quando o comboio partisse da estação, já estarias de volta a casa.
Continuou a afastar-se, agora em passo mais apressado, atravessou o lameiro da Joana Dias e perdeu-se na lomba da estrada junto à quinta de Rica-Fé.
Era tempo de ir para a estação. A mãe acompanhou-me até ao portão banhada em lágrimas. O carteiro, na pessoa do velho Conhés acabava de anunciar. Correeeiiio!!!
Tirou da sacola um aerograma.
--Cá está mais um ,vem da Guiné!
A ansiedade apoderou-se de ambos, abri e comecei a ler.
O Júlio já foi para Angola?
Os da aviação têm uma vida melhor que nós, tudo há-de correr bem com ele.
Irmão, porque não retardaste um pouco mais as tuas notícias? A emoção quase me fazia perder o comboio.
Aconteceu na Rua Acácio Mariano em Bragança na manhã do dia 6 de Abril de 1972
JC


Jc

1 comentário:

  1. gil moutinho19 março, 2021

    Amigo Júlio Corredeira
    Bonita e fresca memória!
    Nesse dia fiz o 1º vôo na Guiné,lembras-te que fomos ligeiramente mais cedo
    Grande abraço e saúde
    Gil

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