quinta-feira, 2 de junho de 2011

“ESTOU DA COR DOS TURRAS"

Quartel e pista de Ninda - foto de Gonçalo Carvalho
Ninda, Leste de Angola, 2 de Maio de 1970. 
Alguns militares banhavam-se no rio. O helicóptero de serviço de socorros na zona de Gago Coutinho sobrevoou-os, por brincadeira, em voo rasante. Ao subir, bateu com a cauda no chão e caiu. O piloto e o mecânico ficaram feridos no acidente.
O Al III 9307 Acidentado em Ninda - foto de Gonçalo de Carvalho 
A poucos quilómetros de distância, uma coluna militar de reabastecimentos partia de Gago Coutinho para o destacamento militar de Mussuma onde estavam aquartelados uma vintena de soldados. 
Picada difícil, sempre infestada de dificuldades – daí os militares que lá serviam raramente serem reabastecidos, o que provocava uma alimentação muito deficiente, onde predominava o célebre arroz com salsichas ao almoço e as salsichas com arroz ao jantar.
Poucos quilómetros percorridos, surgia o primeiro obstáculo: um engenho explosivo, de fabrico rudimentar, a que dávamos o nome de mina, imobilizava a viatura dianteira, uma Berliet. Dada a natureza deste tipo de viatura, bastante robusta, apenas se verificaram danos materiais e a perda de algumas horas preciosas para a pôr operacional. 
Destacou-se nesta emergência o Nunes, 1º. cabo mecânico, que em gesto de solidariedade para com os camaradas condutores, sobrecarregados de serviço, seguia como voluntário na condução de uma viatura na marcha para o destacamento que aguardava o reabastecimento. 
Muito activo, em tronco nu, desenvolve enorme esforço para que a perda de tempo fosse diminuta. A transpiração, a areia suja da picada, o óleo da viatura puseram-no negro. 
E a sua voz fez-se ouvir: «Estou da cor dos turras. Portanto, em mim não tocam!».
A Berliet atacada - foto de Tia Anica de Loulé
Recomeçou-se a marcha. 
Muito lentamente, a coluna ia-se aproximando do destacamento. A picada era péssima. Muito arenosa e estreita, com o denso arvoredo da floresta a querer engolir-nos. A noite aproximava-se. Notava-se, em nós, uma certa tensão. Nisto, um estrondo enorme fez-se ouvir. Uma poeirada negra de pó e dinamite flutuava no ar. A última viatura da coluna, um frágil Unimog fizera accionar uma mina. Era conduzida pelo Nunes.
O Nunes ficou ferido. Fracturas múltiplas numa das pernas. Comunicou-se, via rádio, para Gago Coutinho, pedindo a evacuação do ferido. A resposta fulminou-nos. O helicóptero sofrera um acidente em Ninda, pelo que não eram possíveis os socorros no local da explosão. Teríamos que levar o ferido até ao destacamento e depois se veria.
Noite cerrada quando se chegou ao destacamento. 
Entretanto, num gesto de coragem, o piloto da DO de serviço em Gago Coutinho, levanta voo em direcção a Mussuma, na tentativa de evacuar o ferido, dando instruções para que a pista de aterragem fosse iluminada de qualquer maneira.
Sofregamente, os militares arrancaram capim, amontoando-o em volta da pequena pista, pegando-lhe seguidamente fogo. Estava encontrado o expediente para iluminar a pista.
DO 27 em Mussuma - foto de e com Gonçalo de Carvalho
A aterragem da DO dá-se no meio de grande expectativa e dificuldade. Mas conseguiu-se que o Nunes fosse evacuado para Gago Coutinho, onde seria possível alguma assistência, ainda que precária.
Na manhã do dia seguinte regressámos a Gago Coutinho sem qualquer acidente. Soubemos que, para a DO aterrar, a pista fora iluminada pelas várias viaturas existentes no aquartelamento e que, pela manhã, o Nunes havia sido evacuado para o Hospital Militar do Luso. 
Respirámos aliviados. É que, apesar de todas as peripécias, não contávamos ainda com qualquer morto em combate.
Dias depois, a notícia chegou-nos fria e brutal. O Nunes havia morrido, vítima de embolia…

Jorge Silva Santana em:

Este texto é uma homenagem a um camarada morto em combate. O Nunes. Um verdadeiro herói anónimo. Morreu porque se ofereceu como voluntário. Por solidariedade para com os seus colegas...

O nosso obrigado ao companheiro Jorge Santana, por ter permitido a publicação deste artigo.
E lançamos o repto, quem terão sido os nossos companheiros que participaram nesta missão?

Os Editores

2 comentários:

  1. Era assim. Tantos anónimos valentes. Só espero que o nosso 1º, de visita a Angola, lhes preste a homenagem devida e não se fique apenas pela coroa de flores no monumento dos heróis angolanos.

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  2. Coragem e valentia era apanágio dos nossos soldados.eu confirmei isso mesmo no terreno. E se fosse hoje???��

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