quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A NOITE EM QUE DORMI EM NANGADE


Texto com o meu testemunho do dia em que o Capitão Piloto Aviador Hugo Ventura foi abatido 14 de Abril 1972

Jámais esquecerei um tempo tão marcante passado naquela África longínqua, onde fomos soldados e irmãos.
Foi uma comissão intensa de risco permanente e fortes emoções durante dois anos por todo o Norte no apoio ás nossas tropas, o que permitiu acompanhar a sua angústia constante no suplício das picadas e nas matas, dois anos que valeram por uma vida
A Força Aérea também perdeu os seus homens, os ÍNDIOS e membros de outras Esquadras também regaram aquela terra com o seu sangue e choraram os seus mortos.
Porém tudo fizeram para que nem uma só vida se perdesse, quase sempre em condições adversas, e por vezes nos limites NINGUÉM ERA DEIXADO PARA TRÁS.
Moçambique em 1972 era um País de contrastes numa África encantadora e enfeitiçante.
A Sul o Paraíso (não para todos) onde a guerra não se fazia sentir, viviasse num ambiente acolhedor e pacífico.
Ao Norte o inferno onde a força das armas ditava a lei com todo um rol de destruição e mortes.
No Distrito de Cabo Delgado o Rio Messalo fazia a fronteira dessas duas Áfricas.
Para Norte em terra e no ar o risco de vida era não só para quem combatia, como também para a população civil.
A Sul os efeitos e écos da guerra apenas tinham lugar entre paredes nos hospitais de retaguarda, em Nampula, Beira e Lourenço Marques que recebiam os feridos e estropiados.
Esta era uma realidade inegável, a população desconhecia e ignorava o sofrimento, o sacrifício e toda a desgraça vivida nas zonas de combate.
Isso eu pude constatar nas duas vezes que passei férias em Lourenço Marques, estar ali não era diferente de estar em qualquer lugar ou cidade da Metrópole.
Para qualquer combatente que passou por Cabo Delgado, que conheceu o Planalto dos Macondes, sabe que Muéda fazia jus ao nome com que a baptizaram, era mesmo a terra da guerra.
Assim em mais um dia na linha da frente da Força Aérea no Planalto, mesmo com alguma instabilidade climatérica as missões eram para cumprir.
Dia 14 de Abril 1972, uma parelha de T-6 cumpria uma missão de patrulhamento ao longo do rio Rovuma, a fronteira com a Tanzânia onde haviam as zonas de infiltração dos guerrilheiros da Frelimo.
Eram os Pilotos: o Capitão Piloto Aviador Hugo Ventura e o Furriel piloto Semedo.
Na sua passagem perto da vertical de Nhica do Rovuma foram alvejados por fogo antiaéreo, e o Capitão Ventura é abatido.
Foi um dia negro para a F.A.P. em particular para todos no A.M.-51 Muéda.
Um dos nossos fazia o derradeiro vôo da sua vida quando cumpria a última missão da comissão em Moçambique, o Capitão Piloto Aviador Hugo Ventura.
Sobre esta tragédia e toda a investigação que se seguiu há um livro "O Último Voo", escrito pela sua esposa.
Mas há um testemunho presencial do acontecimento relatado pelo amigo Filipe Pinto Comandante do G.E. Grupo Especial N ° 212 em Nhica do Rovuma, que nesse momento se encontrava com os seus homens em missão naquela zona.
Este testemunho está na sua página do Facebook e foi publicado em 18/9/2019 e é uma narrativa fiel do que se passou naquele dia e naquele local no Planalto dos Macondes.
Depois de dado o alerta, de imediato todo um conjunto de aeronaves iniciaram as buscas sobrevoando a zona no sentido de localizar o avião e resgatar o Capitão Hugo Ventura.
Nas buscas participaram Helicópteros Alouette lll, DO-27, e T-6 de Muéda AM-51, assim como Fiats de Porto Amélia, e um Dakota de Lourenço Marques que se encontrava por perto.
Nangade foi base de apoio e concentração das aeronaves durante o tempo de buscas, que com varios aviões ao mesmo tempo no ar, vasculharam a zona entrando mesmo em território Tanzâniano.
Eu voava em Alouette lll com o então Piloto Aviador Tenente Brogueira já falecido, e fizemos várias incurções dentro da Tanzânia mas sem êxito.
Ao fim da tarde na concentração em Nangade deram-se por finalizadas as buscas e iniciou-se o regresso a Muéda.
Mas alguns imprevistos ainda iriam acontecer antes de o dia terminar.
Participou nas buscas em DO-27 o Furriel Piloto Banazol que pertencia a Nova Freixo mas que naquele dia fazia destacamento em Muéda.
Conheciamo-nos de Vila Cabral, e ele não tendo Mecânico pediu-me para falar com o Tenente Brogueira meu Comandante para me dispensar e eu regressar com ele no DO-27 para entretanto lhe fazer a inspecção entre voos.
O que foi aceite, tendo os Helicópteros descolado de imediato.
Feita a inspecção descolámos pouco tempo depois dos ÍNDIOS.
No avião seguiam o Piloto Furriel Banazol, eu Serrano Mecânico dos Helicópteros, o Santos Especialista M.M.A. dos Fiats e um Capitão do Exército.
A meio do percurso Nangade-Muéda perto do destacamento Nova Beira, deparou-se á nossa frente uma tremenda tempestade que não enganava quanto á sua perigosidade, parecia que tínhamos uma parede pela frente onde iriamos embater.
Havia que dicidir rapidamente, retroceder regressando a Nangade, ou avançar e esperar a ajuda divina.
Via rádio começamos a ouvir os Indios que já se encontravam dentro da borrasca comunicando entre si numa grande confusão, avisando das posições, e da perigosa proximidade entre eles para não se ensarilharem uns nos outros, o que não aconteceu por pouco entre tantas peripécias.
E não esqueçamos que o Helicóptero é uma aeronave que lhe permite fazer vôo estacionário podendo aterrar assim nas mais adversas condições climatéricas.
Dois dos Indios eram o Tenente Brogueira e o Alferes Aristides, penso que também o Alferes Peixoto fazia parte do grupo.
Nós no DO-27 ouvindo o que se passava, tínhamos que decidir rapidamente sabendo que este avião para aterrar precisa de pista, pois para nós não havia vôo estacionário.
Pois é, escolhemos a opção errada, entrámos na tempestade voando a pouca altitude num aviãozinho daqueles.
Com uma chuva torrencial, e visibilidade zero, logo de imediato se impôs o vôo por instrumentos, não havia outra opção.
Para mim foi um dos piores momentos em dois anos de comissão.
O medo apossou-se de mim, vi ali o fim á minha frente, despedime da família, não acreditava na possibilidade de escaparmos daquela encruzilhada.
Entretanto sob uma forte tensão procurámos ganhar altitude e estabilizar a velocidade de sustentação, e de seguida voando em circulo sabendo que ali naquela zona do Planalto não havia elevações no terreno.
Mas tínhamos que sair dali, o combustível não dava para muito mais tempo.
Invertemos o rumo de volta a Nangade e procurámos apanhar teto descendo gradualmente, o receio e os nervos eram enormes, esperávamos o impacto a qualquer momento, uma sensação terrível.
Mas eis que de repente uma pequena aberta com alguma visibilidade, estávamos a cerca de mais ou menos 15 a 20 metros da copa das árvores.
Nasci novamente, ganhei ânimo, e de imediato rumo de volta a Nangade em vôo rasante e onde aterrámos sem problemas mas com o combustível nas lonas.


Podíamos agradecer aos anjinhos o estarmos vivos.
Hoje recordando este momento, lembro a tragédia que aconteceu nove dias depois numa situação semelhante em 23 Abril 1972 com o acidente do Furriel Piloto Fernando Ruas em DO-27.
Este pessoal vinha de Porto Amélia para assistência aos Fiats numa operação em Muéda, e ao tentarem aterrar sobe espesso nevoeiro, bateram na encosta do topo sul da pista causando a morte a todos que vinham no avião, até doi só de recordar.
Entretanto com o cair da noite em Nangade ali pernoitámos os quatro, regressando de manhã a Muéda já com bom tempo e sem qualquer outro problema depois de um tão grande susto por um risco desnecessário no dia anterior.
Infelizmente o que muito queríamos e tudo tentámos, que era encontrar o T-6 e resgatar o Piloto não foi conseguido.
Tínhamos perdido mais um Homem, um camarada e irmão.
Descansa em paz Capitão Piloto Aviador Hugo Ventura.

E todos deixámos um pouco de nós
Na África de sonho lá onde estivemos
Momentos intensos de amizade e dor
Tão longe no tempo mas não esquecemos

Francisco Serrano Mecânico de Helicópteros
Moçambique 71/72

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