quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

"TÔ VOANDO, NÉ ?!"


No início da minha carreira, então jovem copiloto de Boeing 727/100, havia um serviço da TAP a que alguns chamavam "o voo da coruja" que consistia em ligar Lisboa à Ilha do Sal, seguindo-se Bissau e depois regresso a Lisboa. Era uma "noitada" completa pois tinha início perto das 11 da noite de um dia e só terminava a meio da manhã do dia seguinte. As razões para este bizarro horário prendiam-se com o facto de a aterragem em Bissau só ser possível durante o dia pois o gerador que alimentava o sistema de iluminação da pista "estava em manutenção", eufemismo para "está avariado há anos, faltam peças e não vai ser reparado tão cedo". Por essa razão tínhamos que planear o voo de forma a que a aterragem em Bissau acontecesse ao nascer do sol ou perto disso.
Sendo este um horário difícil e cansativo havia no entanto alguns aliciantes que nos faziam encarar este serviço com uma motivação especial. Em primeiro lugar porque nos permitia (aos pilotos, principalmente) operar em África, num ambiente completamente diferente da civilizada Europa onde se localizava a esmagadora maioria dos aeroportos servidos pelos nossos B727. Sim, porque uma coisa é operar em Amsterdam Schipol, Londres Heathrow, Paris Orly, Zurich e Frankfurt, por exemplo, onde existem equipamentos de última geração operados por profissionais altamente qualificados e outra coisa completamente diferente é operar em algumas zonas do globo onde nada, ou quase nada, parece funcionar.
Em segundo lugar havia a possibilidade de comprar mariscos a preço de saldo durante a escala na ilha do Sal. Aparecia sempre alguém a querer vender frutos do mar às tripulações mas também era possível fazer encomendas desde que com alguma antecedência. Era o tempo em que nalgumas casas de tripulantes da TAP se comia mais lagosta que carapaus.
Finalmente, havia o pequeno almoço em Bissau. Como a escala era demorada o nosso representante local oferecia aos tripulantes um pequeno almoço algo exótico no restaurante (?) do aeroporto que consistia num suculento bife com ovo a cavalo e batatas fritas. Nada mau para começar o dia, isto é, se não o tivéssemos começado há já umas oito horas atrás. Mas tudo bem. O problema é que nunca ninguém conseguiu saber de que animal provinha tal iguaria. Vaca não era certamente, mas não lhe ficava nada atrás em riqueza de sabores. Alguns cínicos diziam que era de macaco, outros juravam que era crocodilo, mas a verdade é que a dúvida ainda hoje permanece. O que posso garantir é que das três ou quatro vezes que lá fui nunca alguém teve a coragem de perguntar que carne era aquela. Medo da resposta, talvez.
Mas vamos lá à história que dá nome a esta crónica.
Voando sobre o Atlântico, alta madrugada, ouvi o controlador de serviço no Controle de Tráfego Aéreo de Dakar chamar várias vezes por um voo da Varig que andava na região. As comunicações rádio são por vezes muito difíceis em determinadas zonas do globo, quer devido ao tipo de equipamento usado (banda HF, por exemplo) quer devido a múltiplas interferências de ordem atmosférica. A verdade é que o controle de Dakar andava há uns bons dez minutos a querer saber do Varig mas este não dava sinal de vida. Como o nosso avião estava mais próximo do Centro de Controle as comunicações VHF, de muito melhor qualidade, já eram possíveis e então foi pedida a nossa colaboração:
"TAP xpto, por favor tente contacto com o Varig xyz na frequência de emergência (121.50 mhz) e se conseguir peça para informarem a respectiva posição". Claro que isto foi dito em inglês mas fica já aqui a tradução para não maçar os leitores.
Muito bem. Assim fiz. A dita frequência de emergência é suposta estar permanentemente sintonizada quando se voa em determinadas regiões, como era o caso, por isso era previsível que o Varig a tivesse seleccionado. E tinha, como a seguir se verá.
Chamei uma vez, chamei duas, chamei três. Nada. Continuei a chamar, agora já algo preocupado. Até que finalmente veio do lado de lá uma voz grave, bocejante e incomodada:
"Quem tá chamando o Varig xyz?"
"Bom dia, Varig. Aqui é o TAP xpto"
"Ói, cara. Tudo bem?"
"Tudo bem. O Controle de Dakar é que está há quinze minutos a tentar saber de vocês. Quer saber a tua posição."
Segui-se uma breve pausa. O "cara" ficou a pensar na resposta:
"A minha posição? Décolei, não pousei. Tô voando, né?"
Assunto resolvido. Passei os trinta minutos seguintes a rir à gargalhada e não voltei a ter sono naquela noite. Comandante José Correia Guedes
O Aviador

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