quinta-feira, 9 de junho de 2022

TER OU NÃO TER CARA DE PILOTO



Estava nesse tempo – já lá vão cinquenta e dois anos! – a fazer o curso operacional de F-84 na Base da Ota e só ia a casa dos meus pais muito raramente. A viagem era longa e bastante cara para as minhas possibilidades nessa época.
O que vou contar aconteceu numa dessas viagens.
Quando o comboio chegou, entrei e procurei um lugar para me instalar... Olhei os diversos compartimentos da carruagem, procurando escolher os companheiros da longa viagem até ao Porto. Num dos compartimentos vi um individuo da FAP e, pela insígnia que usava, compreendi que era rádio-telegrafista (op. de comunicações). Sentadas do lado oposto, estavam duas jovens e uma senhora de idade avançada. Decidi instalar-me ali e entrei. Arrumei o meu saco de viagem, sentei-me e acendi um cigarro, disposto a esperar uma oportunidade para entrar na conversa. Entretanto, fui ouvindo.
À medida que o jovem aluno R/T ia desenvolvendo o seu tema, o meu espanto ia subindo gradualmente e tive mesmo que fazer um certo esforço para não me rir à gargalhada!
Perante o olhar de admiração, e algumas vezes de terror, das suas ouvintes, o nosso amigo aviador fazia passagens baixas na sua terra, entrando em volta entre as torres da igreja, - explicou que o avião não cabia direito - e passando em “looping” por baixo da ponte! As palavras eram acompanhadas por gestos elucidativos, que melhor expressavam a dificuldade da ação. Depois subia na vertical, para logo descer em “parafuso”, saindo em vôo invertido sobre o largo da aldeia! Quando se cansou de “esmagar” toda a acrobacia deixando a velha senhora à beira de um colapso cardíaco, resolvi intervir, não da maneira que gostava, mas apenas para “entrar” e ver no que aquilo dava.
- Desculpe interromper, mas depois do que acabei de ouvir, o desejo que já existia em mim de ser piloto, intensificou-se.
Olhou para mim franzindo as sobrancelhas e eu continuei:
- Como é que eu poderei ir para piloto?
O olhar de superioridade com que me contemplou, deixou-me petrificado! Mais do que as próprias palavras, ofendeu-me o ar de desdém com que as pronunciou:
- Sabe, - disse esticando o pescoço esguio – isto de ser piloto não é para toda a gente. Primeiro, é preciso ter habilitações para isso, depois...
Interrompi-o, dizendo-lhe as minhas habilitações literárias, mas ele não me ouviu e continuou:
- Depois são as inspeções, rigorosíssimas, passam dois ou três por cento.
Não me dei por vencido e retorqui:
- Bem, eu posso ficar nos dois ou três por cento!
- Nem pense nisso! - e perante a minha estupefação, concluiu: - A mim basta-me olhar para um tipo para saber se dá ou não para piloto. E você não tem cara disso!
Fiquei completamente esmagado! A minha vontade era desmascará-lo, ali imediatamente, mas consegui controlar-me.
Durante longos minutos permanecemos silenciosos. O mal estar era visível e ele próprio deve ter compreendido que se excedeu. Levantou-se e saiu para o corredor. Levantei-me também e segui-lhe os passos. Encontrei-o junto ao wc, aguardando que este ficasse livre. Era a oportunidade desejada. Toquei-lhe no ombro para que me olhasse.
- Com que então eu não tenho cara de piloto, hem? E você, seu pilantra, tem a lata, o descaramento de se fazer passar por piloto! Lá que você enfiasse as “galgas” que quisesse às meninas, ainda vai que não vai, mas dizer-me a mim, que até sou piloto, que não tenho cara de piloto, é demais!
O rapaz ficou completamente enfiado. Torcia e retorcia o bivaque nas mãos, murmurando desculpas ininteligíveis.
A casa de banho ficou livre e ele fez-me sinal para entrar, o que fiz. Quando saí já não o vi. Tão pouco estava no compartimento. As moças comentavam entre si a saída rápida e inesperada do aviador.
- Mas ele disse que ia para o Porto e, além disso, o comboio não parou em nenhuma estação!
Uma delas dirigiu-se a mim:
- O senhor sabe o que se passou com aquele aviador que ia connosco?
- Não! - respondi - Eu apenas lhe disse que era da polícia aérea e, com tantas infrações, nem o ordenado de um ano lhe chegava para pagar as multas!


Por: Abílio Alves Ferreira


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