sexta-feira, 7 de maio de 2021

A TRASLADAÇÃO DE MORTOS NO ULTRAMAR



Ao longo da guerra que travou no Ultramar, entre 1961 e 1975, o Estado português não utilizou sempre os mesmos critérios quanto à trasladação para a Metrópole dos corpos dos seus militares ali falecidos.
Numa primeira fase, de 1961a 1967, o Estado não custeava essa trasladação. (1)
Assim, caso a família quisesse fazer o funeral do seu familiar numa qualquer localidade da Metrópole, teria que custear o transporte da urna desde a Província em que havia falecido. Cada trasladação custava então uma média de onze mil escudos, o que, actualizado para os tempos actuais, corresponde a cerca de quinhentos e cinquenta mil escudos, ou seja, a cerca de dois mil setecentos e cinquenta euros. A este montante havia que adicionar os custos do funeral, que o Estado também não pagava.

(1) Em 1957 para resolver o caso dos militares falecidos na índia, foi legislado que o Estado se encarregaria da trasladação dos militares falecidos no Ultramar. 
Em 1961, face às dificuldades de evacuação dos corpos das zonas de combate e desconhecimento do montante das verbas necessárias para a trasladação de todos os corpos, os custos destas ficaram a cargo das famílias; o Estado apenas faria a trasladação das ossadas cinco anos após o falecimento do militar. 
Apenas em 1967 face à pressão da opinião pública, o Estado passou a custear a trasladação bem como a realização dos funerais dos militares falecidos no Ultramar.

Números redondos, o custo total a suportar pela Família seria de cinco mil euros, cerca de mil contos.
Apenas a Região Militar de Angola, aproveitando os seus meios técnicos e de transporte disponíveis, tomou a seu cargo o custo das trasladações. Nas outras províncias tal não ocorreu pelo que algumas Unidades militares partilhavam entre os seus elementos os custos da trasladação, mas foram muito raras estas circunstâncias.
Naturalmente foram muito poucos os casos de restos mortais trasladados para a Metrópole, pois a esmagadora maioria da população não tinha recursos para o fazer.
Com o avolumar progressivo das baixas e a dispersão cada vez maior das Unidades militares, foram-se multiplicando pela Guiné, Angola e Moçambique, os cemitérios onde eram inumados os militares portugueses (2).
Embora a regra fosse concentrar os restos mortais em cemitérios existentes nas localidades mais importantes, havia Unidades que, pelo seu isolamento e por estarem afastadas desses cemitérios, se viam obrigadas a inumá-los em minúsculos cemitérios de campanha, junto das suas instalações (3)
Os cemitérios de campanha de guarnição militar isolada, estavam quase sempre localizados entre as duas redes de arame farpado.
Apenas em 1967, quando já não era possível esconder a gravidade do conflito sob pressão de uma opinião pública que o exigia, o Governo legislou no sentido de os corpos dos militares falecidos no Ultramar serem transportados para a Metrópole e entregues às respectivas famílias, a expensas do Estado.
Mas os que já tinham sido inumados ali continuaram, excepto aqueles cujas famílias tiveram possibilidades de custear o transporte, que foram muito poucos.
No entanto, apesar desta nova legislação, muitos outros se lhes juntaram pois para a trasladação era necessária uma urna de chumbo num prazo máximo de três dias após o falecimento, tempo máximo que o corpo levava a começar a decompor-se. Nesta altura, no caso de não se dispor da urna de chumbo, o que muitas vezes acontecia, o corpo tinha mesmo de ser enterrado (4).
Poderá parecer estranho a quem não combateu naquela guerra e hoje leia estas linhas, que não fosse possível transportar um cadáver ou uma urna de chumbo para determinado local num prazo de três dias. Mas sucede que o isolamento de muitas das Unidades era grande, os meios de transporte disponíveis muito escassos e, na maioria das vezes, necessitando de forte escolta, nem sempre disponível em tempo útil. Para cada transporte era muitas vezes necessário montar uma verdadeira operação, nem sempre possível face ao empenhamento operacional existente.

(2) Por vezes, quando havia mais possibilidades de transporte, os restos mortais eram mesmo levados para cemitérios fora das zonas de guerra, como Bissau, na Guiné, Luanda em Angola, ou Nampula e Porto Amélia, em Moçambique. 
Nas Unidades militares de recrutamento local, sempre que as famílias dos militares os acompanhavam o que era normal, os corpos dos militares falecidos eram entregues às respectivas famílias, que os inumavam; em locais e segundo ritos de acordo com as suas tradições. Para os corpos de todos os outros militares, quer os de recrutamento local quer os de recrutamento metropolitano, eram em geral utilizados os cemitérios civis da sede do Batalhão ou do Sector Operacional, onde existia um talhão militar. 
(3) Este isolamento não se media apenas em distância e disponibilidade de avião ou viaturas para transporte, ou pela possibilidade de o fazer. Na maioria dos casos era também consequência da inexistência de urnas em chumbo nessas Unidades isoladas. Por isso, quando não havia transporte num prazo máximo de três dias, os corpos tinham de ser inumados em local próximo da Unidade. 
(4)  As urnas apenas existiam nas sedes de Batalhão, ou em escalões mais elevados, pois havia o cuidado de as esconder. Num quartel do escalão de Companhia isso não era possível e o conhecimento disso baixava a moral dos militares. Como nem sempre era possível colocar a urna no local onde se encontrava o falecido, ou o inverso, no prazo de três dias, o número de campas foi aumentando até perfazer os cerca de 1250 que os relatórios da Liga dos Combatentes hoje referem.

Porém, no que respeita às Tropas Pára-quedistas, desde muito cedo que estas se esforçaram por entregar às famílias os restos mortais dos seus militares mortos no Ultramar, inumando-os nos locais onde elas o desejassem.
Se o Estado os tinha levado para África a fim de eles o servirem, competia ao Estado, no mínimo, devolver os seus restos mortais às respectivas famílias! Também eu pensava o mesmo, que os familiares deviam ser as últimas pessoas neste mundo a terem que se preocupar com o custeio das despesas de uma eventual exumação e trasladação dos militares falecidos na guerra de África.
No entanto, as circunstâncias do tempo e do local não tinham permitido que esta regra tivesse sido seguida com os restos mortais dos três militares pára-quedistas mortos em Guidage, em 1973, os Soldados António Vitoriano, José Lourenço e Manuel Peixoto.

Com a independência das antigas Províncias Ultramarinas, a gestão de todos aqueles territórios passou para o controlo dos novos Estados, daí que Portugal tenha perdido a capacidade de intervir livremente nos cemitérios que ali deixara.
A instabilidade política que se seguiu aos acontecimentos de 25 de Abril de 1974, com mudanças sucessivas de governos, mas sobretudo, a instabilidade verificada nos novos países independentes, impediram qualquer plano de intervenção nesses mesmos cemitérios.
E assim, com o decorrer do tempo, sem qualquer vigilância ou trabalhos de manutenção, eles foram ganhando um aspecto de abandono que chocava. Para agravar esta situação, acontece que as populações africanas não têm pelos mortos o culto que o mundo ocidental lhes presta, de onde resultou que, em alguns casos, tenha havido vandalização dos cemitérios onde jaziam os nossos militares.
Observei situações em que os cemitérios foram arrasados e transformados em campos de cultivo, desaparecendo qualquer vestígio de ali terem existido campas; em outras, foram mesmo construídas edificações sobre os locais das sepulturas, sem prévia trasladação das ossadas; noutros, as campas foram utilizadas para sepultar outros cadáveres!
Era esta a situação em Guidage, onde tinham desaparecido todos os indícios e referências do cemitério de campanha que ali existira.
Em 1996, a Liga dos Combatentes levantou junto do Ministério da Defesa o problema dos militares inumados em África. Foi constituído um grupo de trabalho, que, no entanto, não apresentou conclusões esclarecedoras (5).
Em 2002 a Liga dos Combatentes, cuja Direcção, entretanto havia sido substituída, voltou a levantar o problema junto do Ministério da Defesa. E assim, em Fevereiro de 2003, foi nomeado pelo Secretário de Estado dos Antigos Combatentes um outro Grupo de Trabalho, de cuja actividade resultou um levantamento mais aprofundado da situação (6)
Dando sequência a estes trabalhos, em Janeiro de 2005, o Ministério da Defesa assinou um protocolo com a Liga dos Combatentes, mandatando-a para proceder à exumação e trasladação dos restos mortais dos militares e à sua concentração em cemitérios onde considerasse conveniente, mas sempre dentro do país em que se encontravam (7).

(5). Foi criado um Grupo de Trabalho no âmbito do Estado-Maior General das Forças Armadas, cuja coordenação foi atribuída ao Presidente da Liga dos Combatentes. Do seu trabalho resultou apenas uma listagem com os quantitativos de militares inumados em África e respectivos locais, mas não lhe foi dada qualquer sequência e a Comissão acabou por desaparecer. 
(6) Este Grupo de Trabalho também foi coordenado pelo Presidente da Liga dos Combatentes. Integravam-no um representante de cada Ramo das Forças Armadas, três representantes do Ministério da Defesa (um representante por cada um dos seus três Departamentos) e um representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Da sua actividade resultou uma listagem nominal de todos os militares inumados no Ultramar e da sua localização, levantamento que foi apresentado ao Ministro da Defesa Nacional. 
(7) Na sua proposta para o Governo, a Liga dos Combatentes incluía também, no caso de as famílias o desejarem, a trasladação dos restos mortais para Portugal e a realização do funeral. No entanto, essa parte da sua proposta não foi aceite pelo Governo. Para a realização desta tarefa, contemplada no protocolo referido, o Ministério da Defesa atribuiria anualmente à Liga os meios financeiros necessários.

Recebida esta nova missão do Ministério da Defesa, a Liga dos Combatentes elaborou de imediato um Plano de Acção Global e depois, um Plano Geral de Intervenção, para cada país onde havia militares inumados.
Era como reabrir uma ferida muito profunda. O TGen Almeida Martins sempre fora de opinião que essa ferida não deveria ser reaberta. E assim, o assunto foi passando de um ano para o seguinte, mas a sua discussão era recorrente.
Era grande a amplitude da informação recolhida pela Liga dos Combatentes sobre este assunto, mas muito maior ainda era a quantidade e a dispersão de locais de inumação dos nossos militares em Angola, Guiné e Moçambique. Nunca imaginei que o panorama pudesse ser esse, ou até algo de parecido. Iria ser gigantesca a tarefa de concretizar aquele plano (10)

(10)  Apenas no que se refere ao conflito de 1961/1975 e a militares metropolitanos, estavam identificados:
- Na Guiné, os restos mortais de 175 militares ali falecidos, conhecendo-se os locais onde eles se encontravam inumados, dispersos por todo o território. Desconhecia-se a localização de dez outros militares metropolitanos.
- Em Angola estavam identificados e em local conhecido, os restos de 586 militares, havendo mais 55 em local desconhecido.
- Em Moçambique os números eram de 288 militares ali inumados em local conhecido e 135 em local desconhecido.
E havia ainda a considerar as campas dos militares do recrutamento local: 471 na Guiné, 817 em Angola e 917 em Moçambique.
(Fonte: Edição nº. 342 de Dezembro 2000 da Revista Combatente)


Do livro A Última Missão, do Cor. Paraquedista José de Moura Calheiros.



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