quinta-feira, 8 de abril de 2021

O PARTO DA ISABEL KATOMBÉ - UMA HISTÓRIA DE VIDA.


Acabara de descolar do Alto Chicapa, pequena povoação na Lunda Sul, onde fui levar alguns medicamentos com carácter de urgência, para os militares do exército ali estacionados. Dada a hora, cerca das 11H30, fui convidado pelo comandante do destacamento, para almoçar no pequeno quartel que abrigava os 25 militares destacados no local.
Depois de agradecer o convite, amavelmente recusei, pois o Esteves, mecânico que me acompanhava, tinha um almoço de aniversário de um camarada, marcado para as 13H00 no Luso, cidade que albergava todas as tropas operacionais de todas as especialidade no Leste de Angola.
Subi até aos 1.500 pés acima do solo, estabilizei o avião e introduzi o rumo do Luso. Contacto a sala de comunicações:
--Luso!... Paquito (meu indicativo operacional) chama.
--Paquito, Luso escuta.
--Descolei Alto Chicapa, chegada prevista para as 12H40.
--OK Paquito, informe a 10 milhas em aproximação.
O Esteves era e é, felizmente, um apaixonado do prato cheio. Ainda hoje, nas tertúlias que habitualmente frequentamos em diversos lugares do país, só vemos o Esteves a sorrir de felicidade, quando a terrina lhe fica a jeito. Contudo, há que dizê-lo, este meu companheiro de muitas aventuras, pratica ténis amador desde alguns anos a esta parte na zona do Porto-Gaia, o que faz com que na sua idade mantenha uma forma física apreciável. Por esta razão costumo tratá-lo carinhosamente por Federer de Avintes
--Porreiro pá, vamos chegar mesmo à hora do almoço.
Olhei-o de soslaio através da viseira do capacete e notei um leve sorriso de satisfação nos seus lábios, como se já estivesse a saborear o cabrito que fazia parte da ementa.
--Porreiro para ti...eu estou de prevenção. Vou almoçar na cantina da base uns carapaus fritos e já gozo.
--Aparece lá para o jantar, a festa deve durar até às tantas.
--Talvez, logo se vê como acaba o dia.
Tinham passado dez minutos desde a descolagem e eis uma comunicado:
--Paquito... Paquito... Luso chama.
--Paquito, escuta transmita.
--Por ordens do comando, deve alterar a rota para o Dala. Evacuação de um civil.
--OK Luso, assim farei!
Já nos lixaram, atirou o Esteves em português vernáculo, como que a pressentir que o cabrito já era...
Já te lixaram, queres tu dizer, atirei com ar Irónico.
A mim não me afecta nada aliás, o Dala já está ali à vista, mais doze minutos e estamos lá!


O Dala era uma linda cidadezinha, conhecida por umas quedas de água deslumbrantes que ficava a cerca de 90 Klm do Luso, a leste do local donde eu tinha descolado anteriormente. Como estava próximo, o comandante operacional entendeu que não havia necessidade de ir outra aeronave fazer a evacuação, já que o meu avião estava equipado para este tipo de missões e ganhava-se tempo com esta decisão.
No Dala e pelas informações que recebi via radio, já tudo e todos estavam prontos para a chegada do avião.
Depois de sobrevoar o rio e as quedas de água referidas anteriormente já a baixa altitude, iniciei uma volta apertada, entrei directamente na final e aterrei. Dirigi-me para a placa de estacionamento, onde pude ver à distância uma ambulância militar e seis ou sete pessoas entre elas duas freiras. No Dala, havia uma congregação religiosa e social num agradável edifício que, para além do ensino a crianças, assistiam na área da saúde a população local e em outras acções de auxílio humano como a pobreza.
Quando parei o avião, mantive-me sentado na carlinga, abri a porta e enquanto os enfermeiros do exército, com a orientação do Esteves, instalavam o doente no interior do avião, surgiu perto de mim uma freira de meia idade, dizendo-me com uma voz calma e sorridente que a Isabel Katumbé, estava com sintomas de parto prematuro e agradeceu a minha louvável missão de transportar a Isabel para o hospital do Luso.
Já me tinham comunicado ainda em voo, que o evacuado era do sexo feminino, mas da particularidade de que era uma grávida de nada me informaram.
--Irmã, não tem que agradecer, é minha obrigação ajudar como a de todos os meus companheiros da FAP sempre que estamos de prevenção a este tipo de missões. Mas não seria melhor, alguma das irmãs acompanhar a parturiente?
--Não é necessário, a Isabel é jovem e forte e vai esperar sem problemas até chegar ao Luso. Que Deus vos acompanhe!...
Acenou um adeus com as mãos e apressada, contornou o avião para apertar e beijar a mão da Isabel Katombé, que já estava pronta para eu poder descolar.
Vamos, disse o João enquanto apertava o cinto e colocava e os auscultadores. Com um bocado de sorte ainda chego a tempo do almoço. Não lhe respondi, a partir de agora, pelo respeito que sempre tive pelas dezenas doentes e feridos que evacuei, era imperioso chegar ao Luso o mais rápido possível.
Enquanto rolava para a pista, olhei para trás. A cabeceira da maca neste tipo de avião, ficava muito perto do intervalo entre as cadeiras do piloto e do mecânico. Vi que a jovem mulher tinha o corpo coberto com um lençol de cor azul celeste, e que os seus olhos se voltaram para mim molhados de alegria. Levei o braço atrás e dei-lhe uma palmadinha no ombro, tentando dar-lhe a entender que tudo ia correr bem e que estivesse calma.
Um minuto depois da descolagem , eis-nos em direcção ao Luso.
Quando já em velocidade de cruzeiro e cerca de dez minutos de voo, de relance, pareceu-me ver uns movimentos bruscos no corpo da evacuada. Olhei e vi-a de braços a abanar na nossa direcção.
--Esteves, tira os auscultadores e vai lá para trás ajudar a mulher que ela está com problemas.
--Eu?... Mas que posso eu fazer!
--Mais do que eu, que não posso largar os comandos.
--Bom, está bem, pelo menos seguro-lhe as mãos.
De imediato comuniquei com o Luso e peço um médico com urgência na sala de operações para nos dar alguma ajuda na maneira em como o Esteves devia agir.
--OK, Paquito, vou tratar já disso, a equipa médica já está à espera na placa de estacionamento. Vou mandar chamar o médico.
Entretanto a Isabel, já tinha tirado o lençol e vi o Esteves a segurar-lhe as pernas meio atarantado sem saber o que fazer.
Eu, ansioso, esperava que o médico entrasse em contacto rápido comigo. O Esteves, bate-me no ombro e com ar aflito e diz-me que a maca está toda molhada e que não sabe o que se passa.
Espera!...
--Paquito o médico está a ouvir, pode comunicar.
Expliquei-lhe meio a gaguejar a situação duma maneira geral.
O Dr. Assis disse-me o que poderíamos fazer e perguntou-me o tempo previsto para a chegada.


--Já tenho o Luso à vista, mais oito minutos estou com rodas no chão.
--OK, tenham calma e resto de bom voo, estamos preparados à vossa espera.
Fiz sinal ao Esteves para chegar perto de mim. Como ele não tinha auscultadores, tinha de falar alto para ser audível por entre o barulho do motor.
--O médico disse para pôr uma almofada ou algo idêntico por trás da barriga da mulher, segura-lhe nas mãos e diz-lhe para respirar fundo e espaçadamente fazer força.
--OK, vou já tratar disso. Como não havia almofada, o Esteves agarrou na caixa de ferramentas, enrolou-lhe uns desperdícios de oficina o colocou-a no fundo das costas da mulher.
Neste momento já tinha a pista do Luso à vista, comuniquei a minha posição e recebi a indicação que a partir desse momento tinha prioridade sobre qualquer outra aeronave que estivesse na zona de aterragem.
Júlio! Berrou-me o Esteves ao ouvido. O puto já está com cabeça quase toda de fora. É vermelhinho, parece um índio.
--Deixa lá agora a cor da criança. Vai lá para trás ajudar e segura-te, como vês já, estamos na final para aterrar.
--Puxa, ainda bem!...
Um minuto depois estava no chão a dirigir-me para a placa onde uma equipa militar de saúde esperava pronta a intervir.
Logo que parei e desliguei o motor, o médico e um enfermeiro entraram de rompante e tomaram conta situação.
O resto do parto consumou-se dentro do avião na placa de estacionamento.
Naturalmente, que eu e o Esteves assistimos sentados nos nossos lugares à intervenção médica.
Foi emocionante ver o enfermeiro mostrar o bebé à mãe Isabel.
Desaperto os cintos e saio do avião. Acompanho a entrada da mamã e do bebé na ambulância. Chego-me perto e toco na mão da Isabel como gesto de despedida. Olhou-me com ar cansado mas carinhoso. Apertou com muita força a minha mão e mostrou um leve sorriso. Com o polegar fiz-lhe sinal de OK.
Missão cumprida!
Quando voltei ao avião para recolher o material de voo, já não vi o Esteves.
Soube umas horas mais tarde que ainda chegou a horas de encher a pança de cabrito assado.
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A Isabel Katumbé tinha 17 anos feitos há um mês.
Os bebés negros nascem mesmo vermelhinhos.
Aconteceu na Lunda Sul e Moxico, Leste de Angola em Junho de 1973.
Avião Dornier-27, número de asa FAP 3330. Por:






Júlio Corredeira

1 comentário:

  1. Álvaro Marques10 abril, 2021

    Sou um dos ex-militares que nessa data estava no Alto Chicapa. Um belo texro que gostei de ler e fez-me lembrar outras situações idênticas.Um abraço

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