sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022
FUMO PRETO
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022
FIM DE IMPÉRIO - Descolonizar Angola (PARTE II)
O 12 de junho de 1975 foi de facto o despertar para um "fim" que se sabia calendarizado, mas não tão rápido e violento. A cidade foi varrida, por quase 30 horas de "guerra civil" e nos dias-semanas seguintes as noites eram escuras, fora da Base, e tracejadas por morteiros e projéteis que, vistos de longe, assustavam. Descolar e aterrar eram, contudo, rotinas sem grandes condicionantes.
Pessoalmente, a minha noite de 12-13 de junho e todo o resto do dia foram passados deitado numa banheira da casa de banho, pois "fui apanhado" em plena cidade e pude refugiar-me numa das casas que a FA ali tinha (Bairro). Horríveis 30 horas, pois não se adivinhava o que estaria a acontecer em redor. Só uma operação feita por Comandos do ME nos evacuou para o AB 4.
A destruição, com mortos à mistura (a maioria dos 3 "Movimentos" envolvidos), era imensa e foi aí a debandada dos civis para perto dos "aviões" na ânsia de sair e de ter mais (aparente) proteção.
A enfermaria da Base parecia um bloco operatório, porque não uma morgue, aonde chegavam também feridos de outras localidades. Era um caos absoluto. Talvez dos locais mais assustadores, quando se olha para trás. Um comandante da FNLA, recordo, apareceu em maca, consciente, com um grande "buraco" num dos ombros, tapado com uma rolha de papel.… imagens que não saem. ...
Transcreve-se ainda parte do depoimento, de outro militar do AB 4 (694)
Os Movimentos de Libertação decidiram "digladiar-se" pela conquista da cidade de Henrique de Carvalho, aliás como o vinham fazendo por outras cidades, nomeadamente em escaramuças em Luanda desde março e em especial em Malange, onde também houve tiroteios.
Além da noite de 12 para 13 de junho referida, em 16 de julho, volta a haver nova disputa pelo território, com violentos tiroteios entre o MPLA e a FNLA durante cerca de 18 a 20 horas e foi de novo redobrada a vigilância em todos os postos da Unidade e Rondas.
Edificio do Comando e alojamentos |
Angola,
Henrique de Carvalho, 12 de junho de 7975, 18 horas.
E
subitamente a guerra rebentou! Terrível, ensurdecedora, inequívoca, imediata.
Por detrás do nosso jardim, fora uma ala do hospital atingida por morteiros.
Baixando-me e baixando-as, corremos para a única parte da casa que não tinha
vidros, um corredor para onde o meu marido, chegado há pouco tempo, nos puxava
e tentava acalmar o choro das duas garotas, estonteadas pelo barulho e pela
urgência.
Depois...
foi o escuro, a loucura absoluta, as histórias que eu tentava murmurar para
acalmar as miúdas, os clarões repentinos que nos iluminavam, os estrondos do
mundo a desfazer-se, as granadas que eu temia caírem-nos em cima, o uivo luminoso
das balas tracejantes, os gritos de ordens e desordens da turba em guerra
fratricida: MPLA contra UNITA, MPLA contra FNLA, UNITA contra FNLA. E tudo
vomitava fogo imprevisível, e o tempo era comprido, as metralhadoras furavam
paredes, estilhaçavam vidros e as garotas não adormeciam...
Tinham
fome e medo e uma delas queria a mãe; em determinado momento, o meu marido, a
arrastar-se foi buscar alimentos e apagar o fogão que enchera a casa de cheiros
e teve também de ir até à parede comum às duas vivendas e bater com força. Esperámos
e ouvimos batidas do lado oposto, a miúda acalmou um pouco.
Depois
adormeceram, cansadas de chorar e agarradas a nós que nos agarrávamos à fé. A
esperança de que se matassem todos, que o pesadelo terminasse e novamente se
ouvissem grilos, se pudesse olhar as estrelas, cheirar a terra nessa África
fantástica de noites intensas e misteriosas.
Eu
também queria chorar e não podia e fugir se houvesse um escape. Mas não, eles,
todos, não sei quantos, estavam ali à volta, a brincar com a morte, desprezando
a vida, carregando ódios, executando vinganças ancestrais de tribos contra
tribos, de etnias, concretizando sonhos de autoridade, ilusão resultante do
poder das armas.
Após
algumas horas do início (temporário) das tréguas e depois dos militares portugueses
haverem recolhido feridos e moribundos, transportando-os para a enfermaria da
Base Aérea, a oito quilómetros da cidade, onde no dia seguinte se apresentaram
intrépidos e conscientes guerrilheiros, armados até aos dentes, em missão de
acerto de contas, exigindo a entrega dos inimigos agonizantes...
Não
pude colher, no jardim, as rosas de porcelana que floriam num canteiro, com
violetas africanas, rodeado de ananaseiros e tive pena. E ainda mais me lembrei
delas quando, poucos dias decorridos, novamente se viu ao longe, o céu da noite
de Henrique de Carvalho fervilhar de explosões, riscado do horror da loucura
assassina... por certo espezinharam as minhas rosas!...
4. Paraíso Perdido
697 - Entre eles, os majores João Carlos Oliveira e Fausto Cruz, os capitães José Bernardo Fermeiro e António Várzea, o tenente Pereira e o sargento Fartura.
698 - Natural de Alviobeira, concelho de Tomar. Recordo também a sua mulher, Maria Teresa Nunes, com quem mantivemos fortes relações de amizade.
700 - Destes destaco os tenentes-coronéis Velho da Costa e Feliciano Gomes, os capitães Mendonça Carvalho, Manuel António Melo, Mendes Barbas, Vitor Costa, Tavares de Lima e Vale de Gato, os alferes Antunes Moreira e Joaquim Rodrigues e o sargento Rafael Meireles.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022
FIM DE IMPÉRIO - Descolonizar Angola (PARTE I de II)
O AB4 em 1970. O aeródromo, rodeado de savana, ocupava um rectângulo com mais de 2Km de comprimento |
AB4 2/2/1975. Vindo da Zâmbia e recebido pelo Gov. da Lunda Cor. Leandro, Maj. João Oliveira do AB4 e elementos do MPPLA |
Permito-me transcrever alguns articulados dos Acordos de Alvor, com mais
incidência na área militar (682).
Artigo
6° - O Estado Português e os três Movimentos de Libertação formalizam, pelo
presente acordo, um cessar-fogo geral, já observado, de facto, pelas respetivas
Forças Armadas em todo o território de Angola. A partir desta data, será
considerado ilícito qualquer ato de recurso à força, que não seja determinado
pelas autoridades competentes com vista a impedir a violência interna ou a
agressão externa.
Artigo
8° -O Estado Português obriga-se a transferir, progressivamente, até ao termo
do período transitório, para os órgãos de soberania angolana todos os poderes
que detém e exerce em Angola.
Artigo
32°.- Forças Armadas dos três Movimentos de Libertação serão integradas em paridade
com Forças Armadas Portuguesas nas Forças Militares Mistas, em contingentes
assim distribuídos:
- 8.000 combatentes da FNLA,
-
8.000 combatentes do MPLA,
-
8.000 combatentes da UNITA,
-
24.000 militares das Forças Armadas Portuguesas.
Artigo
33° - Cabe à Comissão Nacional de Defesa proceder à integração progressiva das
Forças Armadas nas Forças Militares Mistas, referidas no artigo anterior,
devendo em princípio respeitar o calendário seguinte:
-
De fevereiro a maio inclusive, serão integrados por mês 500
combatentes
de cada um dos Movimentos de Libertação e 1.500 militares
portugueses;
-
De junho a setembro inclusive, serão integrados por mês 1.500 combatentes de
cada um dos Movimentos de Libertação e 4.500 militares portugueses.
Cangumbe Jul1974. Fernando Castelo Branco, Diamantino Mafaldo, Dr. Jonas Savimbi e Luis Faria Costa |
Mas estas manifestações de boa vontade não foram suficientes para travar ódios e rivalidades (690).
Henrique Carvalho 12/6/1975 |
A nossa moradia, só com rés do chão, era geminada e tinha um pequeno jardim e quintal. Ao lado, habitava o tenente Pereira. Umadas suas meninas estava connosco e já não foi possível fazê-la transpor o muro rasteiro, que nos separava. Minha mulher, apanhada pelo violento tiroteio, nem conseguiu apagar o gás do fogão da cozinha, onde preparava o jantar.
Meti-as num corredor interior, junto à casa de banho, porque era o local mais protegido. Depois de escurecer, sempre sem luz, rastejei para desligar o fogão, pois o cheiro a esturro já se espalhava em redor e recolhi pão, água, fruta e agasalhos. Consegui também alcançar a pistola Walther e as munições que me estavam distribuídas.
Ao longo das horas continuámos a ouvir os passos, brados, gritos e movimentações dos combatentes, envolvendo as nossas residências, rua e quarteirão. Noite escura e medonha, luta ininterrupta, clarões e estrondos contínuos, tempo de incerteza e apropriado para se fazer um rápido balanço de vida. Como é lógico, as nossas forças militares não poderiam envolver-se em conflito alheio e aguardaram o silêncio das armas para, mais uma vez, tentarem a conciliação. Tarefa impossível, porque, em 13 de junho, após os combates, Henrique Carvalho ficava nas mãos do vencedor MPLA.
As vítimas eram recolhidas na via pública. Os vitoriosos capturavam os adversários feridos e abatiam-nos. Do AB 4, chegaram o capitão médico Pedro Barreiros, os enfermeiros e os maqueiros, que começaram a recolher os que jaziam junto ao muro da nossa casa, paredes meias com o hospital.
Foi-me pedida ajuda e colaborei na remoção de corpos ensanguentados, colocados em macas, que depois seguiram para a nossa enfermaria.
Efeitos dos confrontos entre os Movimentos |
Mas, apesar de tudo, os eventos descritos não eram comparáveis aos intensos ataques aos aquartelamentos portugueses da Guiné, atrás referidos.
Adendas:
678 - Ver Acácio Barradas, Agostinho Neto, Uma vida sem tréguas, 1922-1979,
Lisboa-Luanda 2005. No 30° aniversário da independência de Angola. Biografia do
Presidente António Agostinho Neto (1922-1979), completado por testemunhos
inéditos de familiares e amigos.
679 - Angola considera esta data como o início da luta
armada, passando a ser feriado nacional. Foi ainda designado com este nome o
aeroporto internacional da capital e a bela avenida marginal.
681 - AHFA. Comando da 2." Região Aérea. Relatórios do Comando de 1975
682 - In Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra.
683 - A FNLA e a UNITA lançaram suspeitas sobre a governação portuguesa, pois
não estaria a ser imparcial, apoiando o MPLA na sua corrida pelo poder em
Angola, nomeadamente através da entrega de armas. Embora, desde os primeiros
incidentes em Luanda, tenha declarado a sua neutralidade, a nossa administração
não terá deixado de privilegiar o apoio a Agostinho Neto, que apresentava um
programa político mais próximo daquele que se vivia em Lisboa, em pleno PREC,
no chamado verão quente. Entretanto, os Acordos de Alvor foram suspensos em
ago1975 (Decreto-Lei n.° 458-A/75 de 22ago).
684 - Aos combatentes naturais de Angola, que pertenciam aos
quadros permanentes das FAP, foi dada a possibilidade de continuarem nas
fileiras, de acordo com o estatuído na legislação portuguesa, inclusive o
direito de passagem à reserva ou à reforma. Já os do SMO e das Tropas Especiais
e Flechas (criados em 1966), foram desmobilizados e receberam indemnizações do
Estado Português, tendo muitos deles passado, posteriormente, a integrar as
forças dos 3 Movimentos, em especial do MPLA.
685 - Porque, ao contrário do PAIGC e FRELIMO, os 3
movimentos de Angola tinham estruturas militares menos robustas e organizadas.
Por isso, entraram em competição para incorporar os desmobilizados.
687 - Reduzir ou alterar a orgânica de instituições ou
empresas, por forma a aumentar a sua eficiência e dinamismo. Na sua
ingenuidade, apenas anteviam um futuro glorioso e de facilidades.
688 - The greatest enemy of knowledge is not ignorance: it is
the illusion of knowledge. Stephen Hawking, físico britânico (1942-2018).
689 - Major piloto aviador João Carlos Oliveira, que enfrentou as dificuldades
com coragem e determinação.
690 - O processo de descolonização de Angola tornou-se o mais
difícil de todos. Os 3 Movimentos entraram em confrontação e, em março de 1975,
já estilhaçados os Acordos de Alvor, passou-se a uma fase de
internacionalização do conflito, com interferências da África do Sul, EUA,
URSS, Cuba e Zaire.