Mais
um início de tarde escaldante de Verão, na praça principal da Vila nada bolia,
era a hora habitual em que a população se resguardava do sol ou dormia uma
sesta retemperadora. Na esplanada do Café Central, para além das mesas e
cadeiras, o mestre Henriques como era seu hábito, dormitava num equilíbrio
instável, abandonado dentro de um gibão preto de grosso surrobeco, só
perturbado por algumas escassas moscas que teimavam em disputar o único ser
vivo que resistia ao calor da tarde, toda a gente fugira para as sombras
acolhedoras do Café Central e da Barbearia do "Xixóia", já me tentara
infiltrar em ambos os locais mas tinha sido rapidamente enxotado para não
incomodar os raros e destemidos fregueses que naquela hora tinham ousado
fazer-se à canícula para sair de casa.
Como
nunca fora capaz de dormir a sesta, arrastava-me preguiçosamente pelos bancos junto
à praça dos táxis, tentando matar o tempo com alguma coisa de interesse que me
ajudasse a aguentar, até que o resto da canalha, viesse novamente para a rua e pudéssemos
gozar mais uma tarde de magníficas férias grandes.
Dirigi-me
mais uma vez até ao chafariz com o intuito de molhar a cara e matar a sede,
quando terminei, reparei curioso que um pardal com uma enorme palha de trigo atravessada
no bico teimava em atirar-se contra a sirene do quartel dos bombeiros do outro
lado do largo, aquilo era no mínimo muito estranho, desloquei-me rapidamente
para fugir ao sol inclemente e aproximei-me da entrada do quartel situado entre
o Café Central e a Papelaria Havanesa, passei o largo portão e procurei o
melhor ângulo que me permitisse ver tão insólito acontecimento sem que o Sol me
encandeasse, aquilo que mais me chamou a atenção foi verificar que a sirene
tinha as lâminas semicerradas, mas de alguns dos espaços saíam pedaços de palha
de trigo semelhantes à que o pardal transportava, após ter dado voltas ao corpo
da sirene com a palha no bico esvoaçando para cima e para baixo, percebeu que
não conseguia entrar, abandonou a palha e desapareceu, levando com ele o único motivo
de interesse que me trouxera até ali, olhei em volta desanimado reparando no
único ser vivo em movimento, o mestre Henriques desistira de brigar com as
moscas e dirigia-se amparado na grossa bengala de vime, vagarosamente, para a
barbearia do Xixóia, o que me levou de novo ao chafariz para beber mais uns
golos de água.
Tudo
parecia voltar ao normal, quando subitamente um homem irrompeu pela praça vindo
dos lados do campo montado numa bicicleta e gritando a plenos pulmões: há fogo! há fogo! Acudam que há fogo! saltando
da bicicleta em andamento e entrando no quartel a correr, enquanto a bicicleta
se estatelava no chão... nem acabei de beber, já tinha a tarde garantida, corri
para ver tudo desde o tocar da sirene, a chegada dos bombeiros e a saída dos
carros, o 2º Comandante Bogalho não estava presente, mas a esposa Dona Conceição,
que vivia com ele no quartel, dirigiu-se rapidamente para o quadro de Comando, enquanto
ouvia a descrição atabalhoada do local e do tipo de fogo para poder dar com o
toque da sirene a informação aos bombeiros, todos eles voluntários, que viriam
já com a certeza do que tinham de enfrentar (fogo na vila ou fora, acidente na
vila ou fora, afogamento na Alverca, no Tejo ou fora).
Quando
ela accionou a alavanca da sirene corri para fora para ver o arranque e o início
do silvo, mas nada aconteceu, voltei para dentro expectante enquanto ela com ar
de espanto accionava desesperadamente o manípulo para cima e para baixo e nada
acontecia, pelas luzes do quadro era possível verificar que havia electricidade,
mas a sirene não arrancava, virando-se para mim gritou, tu que corres mais
depressa, vai chamar o Comandante que deve de estar no café Central, para que ele
venha cá para resolver a situação... Corri com quantas forças tinha e entrei no
café atirando com as cortinas metálicas que impediam as moscas e os pobres de
entrar, provocando o olhar reprovador dos clientes presentes e gritei: a sirene
não trabalha, dirigindo-me ao Comandante, a dona Conceição mandou-me
chamá-lo...
Ele levantou-se com ar de enfado e virando-se para o empregado de
balcão ainda confirmou, ó António! há corrente? Depois da resposta afirmativa
deste, dirigiu-se comigo e mais uns quantos atrás para o quartel, a dona
Conceição já tinha telefonado ao marido, que estava de serviço no matadouro
municipal e este já lhe dissera para ela arranjar alguém que fosse tocar o sino
a rebate enquanto a sirene não arrancasse, foi isto mesmo que ela transmitiu ao
Comandante mal este chegou ao quartel, depois de também ele tentar dar o
arranque da sirene sem que nada acontecesse, mandou alguns dos presentes tocar
o sino a rebate, pois era uma das formas de convocar os bombeiros; entretanto o
Comandante e os presentes começaram a abrir os portões para a saída das
viaturas e a pôr em marcha os motores para que estas arrancassem assim que
conseguissem chamar os bombeiros, o primeiro carro a sair seria o enorme camião
Ford aberto, de transporte de pessoal e quando este já estava cá fora, chegaram
os que tinham ido tocar o sino, dizendo que a igreja estava fechada e que não conseguiam
tocar o sino... O comandante virou-se para a dona Conceição e perguntou-lhe se
já tinham entregue os morteiros especiais que mandara fazer para a festa de
angariação de fundos para comprar material?
Ela
benzeu-se e disse-lhe; estão lá dentro! Ele virando-se para um dos presentes
disse-lhe: ó Joaquim pega aí nessa escada e encosta-a ali ao muro da parte de
dentro que eu já lá vou ter, dirigindo-se para o interior do edifício de onde
voltou com um morteiro enorme, com uma cana com mais de dois metros e perto de um
quilo de pólvora preta, dirigindo-se aos presentes sentenciou; agora é que
vocês vão ver como acordo a vila toda e ponho aqui a corporação num instante;
quero toda a gente fora daqui que isto não é nenhuma brincadeira, um bicho
destes até arranca um braço a um homem... Eu fugira esbaforido como toda a
gente para o outro lado da rua e refugiara-me atrás do tronco mais grosso de um
dos plátanos que davam sombra à praça e á esplanada do café.
O
Comandante, trepara pela escada, subira ao muro e num gesto teatral, olhou a
meia dúzia de basbaques enquanto encostava a cigarrilha, que entretanto
acendera, no cu do rastilho do morteiro, gozando com as caras de espanto dos
presentes, mais ridículas ainda quando vistas do cimo do muro de onde as
contemplava sobranceiramente, as faúlhas começaram a sair do cano do rastilho e
o barulho começou a ser cada vez mais assustador, o Comandante já não tinha a
cara sobranceira que apresentava quando iniciara o lançamento e parecia que os
segundos decorridos se iriam eternizar, mas por mais que ele levantasse e baixasse
o foguete como para o incentivar a subir, ele continuava perigosamente sem lhe
sair da mão, os presentes começaram a gritar-lhe que o largasse, enquanto o seu
rosto se transformara numa máscara de medo, toda a gente já se barricara em
tudo o que podia dar alguma protecção e não restou ao assustado Comandante outra
solução que a de largar a cana do monstro e olhar horrorizado enquanto ela
batia no chão na vertical e o peso descentrado da pólvora obrigava a cana a
cair na direcção da rua D. Afonso Henriques, o Comandante na precipitação da
fuga desequilibrara-se e caíra de costas para o interior do Quartel, eis senão quando,
o morteiro finalmente arrancou, fulminante, qual míssil rasando o chão em direcção
á porta poente da barbearia... na cadeira mais distante desta o mestre
Henriques, ressonava após lhe terem feito a barba, na outra junto à porta por
onde entrara o morteiro, o mestre barbeiro fazia a barba a um outro cliente
quando o foguete lhe passou junto ás pernas atravessando a barbearia indo
enfiar-se na dispensa onde se guardavam os utensílios usados no ofício, o pó da
espuma de barba, os rolos de papel para limpar as navalhas, as toalhas, os
perfumes, e os artigos de limpeza...
Aos
gritos de fujam, fujam, dos presentes fora da barbearia, todos, mestre barbeiro
e clientes fugiram pelas três portas abertas do estabelecimento, todos menos o
mestre Henriques, que dormia e lá ficou, com o foguete a incendiar tudo com as
faúlhas e na iminência de explodir, do meu local de observação, via parte das pernas,
o gibão e uma manga caída de onde saía uma mão e pouco mais, e o pior
aconteceu, um estrondo descomunal que estremeceu tudo e todos, estilhaçando os
espelhos e vidros das portas, arrancando-as, enquanto uma nuvem de pó branco
encobria todo o edifício e parte do largo. Passados segundos de pânico, toda a
gente correu para a barbearia esperando o pior, quando do meio da nuvem surgiu
um fantasma todo branco cambaleando, aos gritos de: ai que me mataram... ai que
me mataram... toda a gente recuou de pavor e estupefacção, no êxtase da
situação, gritei em pânico: fujam que é o fantasma do mestre Henriques,
arrancando uma gargalhada geral aos presentes... O fogo entretanto já assumira
contornos de tomar conta do estabelecimento, quando o Comandante, que
entretanto se recompusera gritou para os presentes, vão buscar uma mangueira
para apagarmos o fogo!
O bom
do mestre Henriques fora arrastado para a esplanada, enquanto um dos empregados
do café trazia numa bacia com água um toalha molhada para ele tirar os quilos
de pó de barba da cara e mãos, mas era necessário ir com ele ao hospital, pois
estava cheio de escoriações provocadas pelos estilhaços da explosão, para além
de estar aflito dos tímpanos, e isso só era possível de verificar por algum
médico ou enfermeiro. Entretanto começavam a chegar os primeiros bombeiros
enquanto se apagava o fogo da barbearia, mas era preciso ir apagar o fogo no
campo que originara toda aquela confusão, e por cada um que chegava tínhamos
que lhe gritar que o fogo não era aquele, mas sim outro e eles lá iam
equipar-se sem perceberem nada do que se passava ali...
Com o
lançamento da água, todo o pó de barba derramado ia-se tornando numa onda de
espuma que transbordava do interior pelas três portas, formando uma camada
escorregadia que já dava pelos joelhos dos que mais perto combatiam o fogo do
interior, e a cada novo voluntário que de bicicleta ou a pé correndo se
aproximavam do quartel, era necessário gritar-lhes que travassem as bicicletas
e o passo, pois ao menor descuido a queda era certa...
Depois
de haver o número mínimo de voluntários necessário ao combate dos dois fogos as
viaturas lá foram saindo, mas nunca como naquela tarde eu tivera tanto para
contar aos meus preguiçosos companheiros de brincadeira...
E
afinal porque é que a sirene não tocara? O pardal que eu vira com a palha no
bico e a companheira, resolveram fazer o ninho dentro da sirene, mas um golpe
de vento, ou o acumular das palhas no interior fizeram cerrar as lamelas
bloqueando a entrada e a saída, o desespero do macho era por a fêmea do casal,
estar lá dentro provocando a sua morte e a avaria da sirene.
Dias
mais tarde, quando fizeram finalmente a festa para angariação de fundos, para
compra de material e reconstrução da barbearia, ouve concerto pela banda,
música e bailarico, mas foguetes é que não, que para o susto já bastara o que
acontecera, mas festa que não metesse “morteiros” não era festa...
JFMA (ACO)
Golegã, 15 de
Agosto de 1957