Caminha, triste, pelas ruas da cidade grande, solitário, sem rumo.
Olhos postos no chão, como se tivesse medo de encontrar - (quem sabe ?) - algum antigo camarada de armas.Segue, lentamente, embrulhado naquele sobretudo que já fora de cor cinzenta, oferecido naquele Abrigo, onde todas as noites lhe dão uma sopa quente, um pão e fruta. Onde ele come na tal mesa do canto, sempre sozinho, sem falar com ninguém. Onde não ouve ninguém a não ser os seus pensamentos.
Caminha. Sapatos arrastando pelo chão, castigados pelo peso da tristeza e da desilusão. Vai, "enfiado" numas calças demasiado largas para o seu corpo, já franzino. A barba, grande, grisalha, protege-o das noites frias e compridas, tão compridas...
É o ZÉ MARIA. Era o 47 na tropa.
Continua a andar.
E de tudo se lembra:
A sua terrinha, tão longe, onde nasceu, onde foi feliz, e para onde tem vergonha de regressar. Com medo que dele "façam pouco", com medo que o recusem, como aliás, lhe fazem nesta cidade grande, tão grande, onde ninguém conhece ninguém.
Lembra-se da mata, lá em África, dessa mata que ficava tão longe de tudo.
Dos tiros, dos ataques dos "Turras", do medo, da fome e da sede, das febres...
Lembra-se agora daquela negra do Kimbo, a Maria Kivunda, que o fazia feliz, e de tudo o fazia esquecer nas noites em que a chuva batia forte sobre a palhota...
Continua a pensar e a caminhar pelas ruas da cidade grande, dessa cidade que não lhe dá valor nem aos seus antigos camaradas de armas. Estão todos esquecidos.
Essa cidade que rapidamente tudo esqueceu. Agora tudo é tão diferente, todas as pessoas são agora tão diferentes...
Lembra-se do " SANTARÉM", do ANDRADE, do "PILHAS", do "MATOSINHOS", do 550, que regressaram de lá, das matas, enfiados em sacos pretos e com um simples pedaço de cartão amarelado no dedo grande de um dos pés. Com um número, o número de cada um deles.
Um número. Foi o que eles passaram a ser.
Um simples número.
Recorda também o piloto Martins e todos os camaradas que caíram, juntamente com o Héli em que voavam, abatidos na zona dos Dembos.
Caminha. Pensa, pensa, pensa. Sofre.
Como tantos, tantos como ele, é um ignorado por esta Nação que os enviava para lá, e que lhes dizia:
"PARA ANGOLA E EM FORÇA !!! "
Em força!, (pensa)
Que força?
A força de ter deixado seus pais, sozinhos, amanhando a terra dura, sol após sol ?!
A força de ter deixado a sua irmã, grávida do caixeiro viajante que por lá passava de vez em quando, tendo-lhe "enchido " a barriga para depois desaparecer e nunca mais voltar ?!
A força que tantos camaradas tiveram que ter para deixar filhos pequeninos, ou mães viúvas ?!
A força de terem que deixar filhos por criar?!
"Força"! - Diziam "eles", os tais que cá ficavam, sentados em gabinetes cheios de alcatifas mais confortáveis e macias do que o sobretudo que o tapa agora.
Nisto:...
Espera!!!
Que foi isto?!
Alguém passou por ele deixando no ar um perfume bem seu conhecido de outrora...
Sim...O perfume do After Shave que o tal 1º. Sargento lá usava todos os dias!
ZE MARIA vira-se para trás.
Reconhece-o!
É ele! - O 1º. Sargento Serra !!!!
Esse mesmo, que, a ele e aos seus camaradas tornou a vida num inferno, lá em ÁFRICA !!
Aquele vaidoso que até lhes retirava as cartas que vinham no SPM !!
Aquele mesmo a quem o ZE MARIA e os seus camaradas juraram matar um dia.
Lá ia ele, bem vestido, perfumado, bem acompanhado.
ZE MARIA fez ainda um gesto de voltar para trás, para lhe dizer que era o 47, para ajustar contas antigas.Deu ainda três passos, mas... parou.
BÁ !! - Mas, vinganças? Agora? Não !!
ZE MARIA tinha feito as pazes com o passado, consigo mesmo, embora as mágoas nunca o deixem.
Tenta até fazer as pazes com o mundo que o rodeia
Continua a caminhar.
Segue agora por uma rua comprida, larga, cheia de montras já iluminadas com luzes de Natal.
"Está perto este Natal," pensa, melancólico.
"Faltam só algumas semanas "...
Natal, de quando lhe darão, no tal ABRIGO, comida reforçada, onde haverá mais sorrisos a enganar as lágrimas, mais gargalhadas a enganar os choros, mais fingida felicidade a enganar o grito prestes a saltar da boca, da alma, de bem de dentro de cada um dos seus companheiros "SEM ABRIGO".
Ao ZÉ MARIA, o 47, vale-lhe, de vez em quando aquela rameira velha, naquele sótão também velho, onde ele, depois de subir as escadas também de madeira velha e "rabugenta", ali encontra um pouco de carinho, um pouco de aconchego.
Sem pagar.
Sem ter que pagar.
Continua a caminhar.
A tropa, sempre a tropa, os camaradas mortos em combate, sempre a povoarem-lhe a cabeça!!!
As recordações daquela guerra que deu em nada, a não ser o envelhecimento precoce de cada um deles, vidas alteradas, e mortes, tantas mortes.
"Para quê ?!"
"Para quê ?! "
"Porquê ?!"
Tapa-se agora melhor no velho sobretudo.
O ABRIGO está já ali à sua frente.
Entra, e como sempre dirige-se à tal mesa, a do canto.
Já o espera um prato de sopa quente, um pão, uma maçã, e a solidão.
Senta-se.
Olhos na comida, pensamentos longe:
Na sua aldeia.
E em ÁFRICA.
Nessa ÁFRICA que lhe roubou a juventude.
E, nesta Nação que se esqueceu dele.
Dele de tantos, tantos, tantos...
Já é noite "fechada".
Está frio. Aconchega-se ainda mais no sobretudo que já fora de cor cinzenta.
Vai agora com passo apressado, pois não vê chegada a hora de retornar ao "seu recanto", naquele vão de escadas e onde o espera o seu melhor amigo, o "PIROLITO", desejando do dono uma simples festa no pelo, ou um mimo, guardado como sempre no bolso fundo daquele sobretudo pesado, e outrora, cinzento.
O tal mimo que o 47 guarda para o "PIROLITO", o seu único amigo.
Como sempre.
Conto de minha autoria(de ficção ?), dedicado a todos os Ex.Combatentes da Guerra do Ultramar.
O ZÉ MARIA, 0 Nº 47, podia ser qualquer um de nós.
E, na verdade, quantos ZÉs MARIAs, quantos 47s, anónimos, não andarão por aí? Esquecidos ?
Conto inédito, a editar em livro um dia.
Autor: AHV ESGAIO - FAP - 551/67
Comissão em ANGOLA 69-71.