sexta-feira, 18 de julho de 2025

NÃO HÁ GUERRAS BOAS OU MÁS, ELAS SÃO SEMPRE ACTOS DE TERROR E SOFRIMENTO.


As crianças, sempre as crianças, as mais indefesas, os inocentes perdidos no meio de tanta desgraça e crueldade. Estas imagens lembram-me outros tempos!... 

Moçambique 1971/1972
Metangula, Lago do Niassa, VilaCabral, um dos locais lindíssimos em África.
Uma imensidão de água com 560 quilómetros de comprimento e 80 quilómetros de largura que banhava também as margens de outros dois países, o Malawi e a Tanzânia. 
Toda a envolvente natural, as pequenas praias, as matas, a vida selvagem e Marinha eram de uma grande beleza, que transmitia uma sensação de paz, mas que a guerra com todo o poder de destruição e morte também não poupava. 

Os “ÍNDIOS” nas suas andanças pelo território a norte de Moçambique faziam aqui algumas paragens. 
Recordo-me que no topo norte da pista de aterragem lá estava sempre uma caravana pertença de um casal rodesiano que ali faziam a recolha de uns peixes exóticos apenas existentes no lago do Niassa, e que comercializavam fazendo a exportação via aérea para outros países através da Rodésia. 
Nas operações “heli” transportadas que ali fazíamos com os fuzileiros nas zonas de Lunho e Nova Coimbra, sempre que terminavam já tarde pernoitávamos em Metangula nas instalações da Marinha, regressando na manhã seguinte a Vila Cabral. 
À tardinha no final das operações após as inspecções aos Helicópteros, era feito o reabastecimento de combustível com a bomba manual. 


Um bidão de 200 litros era colocado junto de cada “Zingarelho”, uma percentagem do jota no fundo dos bidões não podia ser utilizado devido às impurezas, e evitando desperdício era dado às crianças para iluminação das suas palhotas, e outros fins.
A miudagem daqueles aldeamentos acostumadas já a esta rotina de movimentos das tropas e aviões, tentavam sempre tirar algum proveito na luta pela sobrevivência e fazer frente à miséria tentando a sorte por conseguir algum "espitrólio" como lhe chamavam. 

Dava dó vê-los em grande correria atropelando-se uns aos outros para conseguirem melhor posição junto do bidão, descalços com as roupas em farrapos, com panelas de alumínio, latas ou outros utensílios que tivessem à mão tentando apanhar o máximo que pudessem.
No grupo havia um albino que sempre me deixava confuso e pensativo, um preto completamente branco de cabelo amarelado, que se destacava no meio dos outros pretos apenas pela diferença da cor, eu achava esquisito. 
Na sofreguidão alguns tropeçavam entornando o pouco que já tinham, ficando todos regados com jota desde a cabeça aos pés, apesar de nós termos algum cuidado para os servir sem os molhar, mas era difícil.
Um cenário que tinha alguma graça, mas que transmitia um grande sentimento de compaixão. 
Estou certo que outros dos meus camaradas se recordarão destes momentos nas nossas passagens por Metangula!
A luta dos miúdos para pouparem umas "esquinhentas" que tanta ajuda lhes fazia na miséria que passavam.
Por outro lado este acto desagradava aos “cantineiros” porque prejudicava o seu negócio, pois eram menos uns litros de petróleo que vendiam e por isso não apreciavam nada esta dádiva dos Índios às pobres crianças tão necessitadas. 
Momentos que não se apagam na memória, e que imagens dos conflitos actuais que hoje nos entram casa dentro através da T.V., trazem à lembrança estes e tantos outros dramas e desgraças testemunhados por nós durante dois anos naquela África enfeitiçada e inesquecível. 


A guerra, qualquer guerra, para quem a vive e sente na pele, ela é dura feia e cruel, mas para aqueles que apenas a vêm nos filmes talvez aí possam encontrar alguns contornos de romantismo. 

Basta de ódio, a paz o amor e cooperação é o que o Mundo precisa.

Francisco Serrano Mecânico de Helicópteros
Moçambique 71/72



 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

UMA HISTÓRIA DE ÁFRICA, UM MENINO CHAMADO DAKOTA


O Dakota é o mais célebre avião de passageiros de sempre.
Ainda há alguns a voar na América do Sul. Tive o prazer de, em Angola, voar neles cerca de 12 anos e 10.500 horas !
Um dia, em plena guerra, (na qual estive envolvido até ao pescoço), na carreira do Norte, o Administrador veio ao campo de aviação e pediu-me:
-"Comandante temos uma mulher em perigo de vida, há três dias em trabalho de parto, tem de ser levada para o hospital de Carmona (Uige sede de província) quanto mais cedo melhor! "
Tínhamos de ir a Maquela (30 minutos) e voltar.
Acelaramos tudo e na volta deitamos a moça (18 anos) na bagageira da frente num colchão de espuma, da ambulância... e toca a andar, depressinha.
Coloquei o Criado de Bordo (mais tarde Comissário de Bordo) o meu compadre Ramos Queva (negro) a cuidar da moça.
A meio da viagem (1/2 hora) ouço o Queva aflito:
-senhor Comandante está a nascer! Ó Ramos, ajuda, sabes como é...tens nove filhos, que viste nascer em casa!
Elucide-se que eu era o padrinho do número nove!
Daí a uns minutos:
-Eh, já cá está, é um menino!
Abriu a porta e anunciou aos passageiros:
-É um menino!
Recebeu uma salva de palmas.
Resperei fundo, reduzi a velocidade e dez minutos depois começamos a descer para Carmona e lá foram eles para o hospital...como convinha.
Carmona

Fiquei intrigado com a pressa do nascimento, mas percebi porquê.
A viagem era feita a mil pés (300 metros) de altitude por baixo das nuvens (não havia ajudas rádio) e áquela hora, o aquecimento provocava bastante turbulência.
Foram os abanões que provocaram o parto.
Passados uns tempos o Ten.Cor. Jacinto Medina, meu director, chamou-me á DTA e disse-me:
-Carvalheira, o Governador Geral soube do parto no avião e quer que eu seja o padrinho e você como testemunha!
Assim no sábado, vai á Damba como verificador de pilotos (eu era piloto chefe do Dakota) e baptiza o rapaz em meu nome porque eu vou para Lisboa hoje á noite. Já está tudo tratado e tem aqui a procuração (nesse tempo a certidão de Baptismo era a certidão de Nascimento).
Lá fomos á igreja e baptizámos o miúdo.
Ao assinar a certidão (pelo Medina) li e comecei a rir-me como um perdido.
O miúdo chamava-se, Jacinto António Dakota DTA Capulenda. Nem mais nem menos !
Regressei alegre e divertido a Luanda.
Uns dois ou três anos depois vem o administrador, acompanhdo de uma moça e pela mão um rapazinho bem parecido!
-Beija a mão ao senhor Comandante teu padrinho.
-Ó Joana, não é senhor Comandante. É senhor meu compadre!
Por engano do administrador eu é que era o padrinho (na certidão e na pia Baptismal). 
Depois vim para a TAP e nunca mais os vi.
Bonita história, verdade ?

Do Comandante António Rebelo Carvalheira,  que foi Piloto da FAP (F84), Comandante na DTA e na TAP
Publicado no Jornal de Famalicão em 1Jul2021