As crianças, sempre as crianças, as mais indefesas, os inocentes perdidos no meio de tanta desgraça e crueldade. Estas imagens lembram-me outros tempos!...
Moçambique 1971/1972
Metangula, Lago do Niassa, VilaCabral, um dos locais lindíssimos em África.
Uma imensidão de água com 560 quilómetros de comprimento e 80 quilómetros de largura que banhava também as margens de outros dois países, o Malawi e a Tanzânia.
Toda a envolvente natural, as pequenas praias, as matas, a vida selvagem e Marinha eram de uma grande beleza, que transmitia uma sensação de paz, mas que a guerra com todo o poder de destruição e morte também não poupava.
Os “ÍNDIOS” nas suas andanças pelo território a norte de Moçambique faziam aqui algumas paragens.
Recordo-me que no topo norte da pista de aterragem lá estava sempre uma caravana pertença de um casal rodesiano que ali faziam a recolha de uns peixes exóticos apenas existentes no lago do Niassa, e que comercializavam fazendo a exportação via aérea para outros países através da Rodésia.
Nas operações “heli” transportadas que ali fazíamos com os fuzileiros nas zonas de Lunho e Nova Coimbra, sempre que terminavam já tarde pernoitávamos em Metangula nas instalações da Marinha, regressando na manhã seguinte a Vila Cabral.
À tardinha no final das operações após as inspecções aos Helicópteros, era feito o reabastecimento de combustível com a bomba manual.
Um bidão de 200 litros era colocado junto de cada “Zingarelho”, uma percentagem do jota no fundo dos bidões não podia ser utilizado devido às impurezas, e evitando desperdício era dado às crianças para iluminação das suas palhotas, e outros fins.
A miudagem daqueles aldeamentos acostumadas já a esta rotina de movimentos das tropas e aviões, tentavam sempre tirar algum proveito na luta pela sobrevivência e fazer frente à miséria tentando a sorte por conseguir algum "espitrólio" como lhe chamavam.
Dava dó vê-los em grande correria atropelando-se uns aos outros para conseguirem melhor posição junto do bidão, descalços com as roupas em farrapos, com panelas de alumínio, latas ou outros utensílios que tivessem à mão tentando apanhar o máximo que pudessem.
No grupo havia um albino que sempre me deixava confuso e pensativo, um preto completamente branco de cabelo amarelado, que se destacava no meio dos outros pretos apenas pela diferença da cor, eu achava esquisito.
Na sofreguidão alguns tropeçavam entornando o pouco que já tinham, ficando todos regados com jota desde a cabeça aos pés, apesar de nós termos algum cuidado para os servir sem os molhar, mas era difícil.
Um cenário que tinha alguma graça, mas que transmitia um grande sentimento de compaixão.
Estou certo que outros dos meus camaradas se recordarão destes momentos nas nossas passagens por Metangula!
A luta dos miúdos para pouparem umas "esquinhentas" que tanta ajuda lhes fazia na miséria que passavam.
Por outro lado este acto desagradava aos “cantineiros” porque prejudicava o seu negócio, pois eram menos uns litros de petróleo que vendiam e por isso não apreciavam nada esta dádiva dos Índios às pobres crianças tão necessitadas.
Momentos que não se apagam na memória, e que imagens dos conflitos actuais que hoje nos entram casa dentro através da T.V., trazem à lembrança estes e tantos outros dramas e desgraças testemunhados por nós durante dois anos naquela África enfeitiçada e inesquecível.
A guerra, qualquer guerra, para quem a vive e sente na pele, ela é dura feia e cruel, mas para aqueles que apenas a vêm nos filmes talvez aí possam encontrar alguns contornos de romantismo.
Basta de ódio, a paz o amor e cooperação é o que o Mundo precisa.