Os helicópteros iam para o Negage, no planalto do Uíge, o centro do terrorismo, onde, de facto, de acordo com os acontecimentos, pareciam ser mais necessários. Pelo menos era do que eu pensava saber quando embarquei para o Ultramar...
E a razão porque eu estava agora no Aeródromo Base nº.3.
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AB3 Negage |
O tenente Rego de Sousa era da "velha Guarda", vinha de cabo piloto,
do tempo logo a seguir aos finais da Segunda Guerra; conhecia - e se calhar
tratava por tu - uma boa parte dos oficiais superiores que na altura comandavam
a Segunda Região Aérea. Cá para mim - com a importância do peso da veterania -
os seus argumentos devem ter sido retumbantes: Os helicópteros ficaram para
sempre na Base Aérea 9.
Para dar
assistência ao Alouette II que se encontrava destacado em Cabinda, era a mim
que calhava passar uma temporada no território. O piloto era o Assunção, um
velho conhecido do tempo dos Helldivers, no Montijo. (Pelos anos 55 ou 56, uma das suas "diversões", era mergulhar o
bombardeiro pela Serra da Arrábida abaixo para sair a rapar a praia; a outra,
era visitar a namorada ao Algarve, às vezes, acompanhar a volta a Portugal em
bicicleta. Por umas duas vezes, porque o motor tinha resolvido asnear, pouco
faltou para ficarmos pelo caminho).
Logo a seguir ao Rego de Sousa, dos sargentos, o Assunção tinha sido dos primeiros pilotos a voar de Alouette II na Base Aérea 6. Durante três anos tínhamos andado por todo o lado... até aos melões, nas terras das redondezas, durante a manhã, que íamos depois comer, na parte da tarde, refastelados nas margens da Lagoa de Albufeira.
E lá íamos
nós por cima do Maiombe, a transportar três engenheiros, creio que para Buco-Zau ou Miconge, bastante perto da fronteira Norte do território do enclave
de Cabinda. Assunção ligou-me através da interfonia.- Não estás a ouvir uma chiadeira na embraiagem?... - perguntou ele.
Eu ia distraído, a ver a paisagem, se calhar a conjecturar onde é que ele ia
"pôr o estojo" se o "fogareiro" lá atrás lhe desse para
fazer das suas. Adiantei qualquer coisa sem nenhuma convicção. Logo a seguir
aterrámos no destacamento militar de Belize. Passei uma inspecção minuciosa ao
helicóptero, como ver através do tambor para o interior da embraiagem me
ultrapassava, concluí que me parecia tudo normal. O Zé concordou...
- Mas a chiadeira vem dali. - Apontou o acessório rotativo, entre o motor e a
roda livre.
Que o piloto não ia sair dali com o aparelho a voar naquele dia já eu
calculava, mas que estivesse a engendrar a luminosa ideia de atravessar o
Maiombe por estrada, só duma cabeça prodigiosa.
- Mas para quê?... Se vamos chegar a Cabinda altas horas da madrugada?
- Vou arranjar um transporte - resolveu ele a auscultar o entardecer. Atirou um
"volto já", regressou passados uns minutos com um jipe. Além do
condutor, trazia com ele um soldado de escolta armado de G-3.
Os nossos passageiros não tinham perdido tempo: Tinham desaparecido noutro jipe
pelo Maiombe dentro. Protegi o helicóptero com o que tinha à mão, um quarto de
hora mais tarde seguíamos na peugada dos três técnicos.
A tarde tinha caído. Se ainda não era noite fechada, não demorou muito a
acender as luzes do jipe depois de entrar na floresta. Tudo bem, não era nada
do outro mundo... Devíamos chegar a Cabinda por volta da meia noite. Cerca duma
hora depois, de repente, sem enxergar um palmo em redor, ficámos paralisados, a
tentar ver a cara uns dos outros: Tínhamos ficado sem luzes, reduzidos à chama
do isqueiro do Zé em pleno coração do Maiombe.
- Não fumem... não façam nenhum barulho - recomendou o sargento-ajudante.
Com excepção duns recontros próximo da fronteira já há uns tempos, ao que
constava, não havia terrorismo no enclave. Pois sim. Mas isso era o que se
dizia. Para quatro gatos pingados dentro dum jipe na total escuridão e no meio
do desconhecido, a conversa era diferente.
- Não passámos à pouco por uma tabuleta, num cruzamento? - perguntou o piloto.
- Passámos sim, meu ajudante - respondeu o condutor. - Era a estrada para a
Chiaca.
O soldado explicou que havia lá um quartel, adiantou qual era a unidade lá
estacionada.
- Veja lá se os farolins de trás funcionam... Óptimo... funcionam. Você é capaz
de levar o jipe de marcha atrás até lá? - E acrescentou: - Quando estiver
cansado, diga-me... eu guio, se for preciso.
Pelos vistos, devia ser comum na unidade os carros entrarem na porta de armas
de marcha atrás às tantas da noite. Ninguém ligou nenhuma. Se eu não soubesse
já do que os militares são capazes mesmo em campanha se o comando abranda, era
capaz de pensar que a Chiaca era um campo de férias. Mas não era. Embora com a
guerrilha mais controlada que no Norte de Angola, não eram despropositadas
algumas precauções. Eu alimentava uma esperança: Não me parecia que um sargento largasse um serão
tranquilo para reparar uma avaria àquela hora da noite. Enganei-me. "Era o
mínimo que ele podia fazer pelos amigos da Força Aérea". Ia explodindo
quando vi o sorja ligar as luzes, anunciar com um largo sorriso que podíamos
seguir viagem. Rosnei um dos mais violentos impropérios do meu vocabulário, com
um furioso pontapé na carroçaria entrei no jipe.
Arrancámos. O
primeiro-sargento correu atrás de nós. Entregou ao piloto um bocado de cabo
eléctrico desfiado.- É melhor levar isto... - recomendou. Apontou a lanterna à caixa dos fusíveis,
retirou um deles e explicou: - O fusível é este. Se voltar a fundir, basta
colocar de novo mais três destes fios. Não ponha mais de três... Isso pode
"rebentar" de vez com as lâmpadas dos faróis... Se puser menos, o
mais certo é não aguentarem mais de dois minutos.
Parecia não ser preciso. Fartámo-nos de galgar quilómetros sem recorrer aos
ensinamentos do sargento. Foi esse o problema: É que agora, se sabíamos estar a
dezenas de quilómetros de qualquer lado, não fazíamos a menor ideia de onde nos
encontrávamos. Tínhamos a mezinha, todavia: O Assunção tirou o isqueiro.
Estendeu-o ao condutor, disse-lhe para o acender escondido por baixo do
volante, em segundos reparou o fusível. Se aguentasse tanto como o anterior...
Não durou nem dez minutos; os seguintes nem isso. Os filamentos que restavam
começaram a fundir a cada volta das rodas. Esgotados os últimos recursos,
acabámos parados na escuridão. Com o pressentimento de que ao passar por uma
aldeia indígena, num cruzamento antes, tínhamos entrado na estrada errada, um
dos soldados teve a luminosa ideia de alvitrar que estávamos a dois passos da
fronteira do Congo.
Andámos um bocado em marcha atrás, parámos à entrada da aldeia.
- Vocês já ouviram falar de problemas por aqui? - perguntou o piloto.
Os dois soldados disseram que não. Não tinham tido nenhum problema no
território... pelo menos não sabiam de nada por ali... Só há uns tempos, na
fronteira Norte.
- Vamos lá perguntar então onde estamos - resolveu o Assunção.
Tirou a Walter do coldre, os dois soldados seguiram-no de arma aperrada. Sem
saber o que faria com aquilo, preparei a FBP. Batemos à porta duma palhota, um
dos soldados chamou o morador por um genérico da língua nativa.
Fiquei abismado. O ancião de cabelos brancos que abriu a porta era um europeu
sem tirar nem pôr. Exceptuando a cor da pele, nada nele parecia ter a ver com
as feições da generalidade dos autóctones africanos. Segurava um lampião como o
que eu vira centenas de vezes na mão do meu avô; talvez sugestionado por isso,
a última coisa que me ocorreria encontrar em África era alguém com tantas
parecenças com o homem que me tinha criado. Compreendia e falava um pouco de
português, o bastante para nos entendermos.
Sim, estávamos muito perto da fronteira, compreendemos. Entre mais umas
palavras soltas, percebemos também que não estávamos em perigo... Podíamos
enfim respirar fundo, talvez descansar um pouco até ao amanhecer. Quando lhe
sugerimos que se fosse deitar, recusou, deu a entender que ficaria ali a
alumiar-nos o resto da noite. E ficou. Ao que parecia, estava a apreciar a
nossa presença. Uma boa hora mais tarde indicou uma direcção, pronunciou umas
palavras. Um dos soldados arranhava o dialecto do território:- Está a dizer que vêm aí carros - traduziu ele.
Nós não ouvíamos nada. Por mais que apurássemos os sentidos, tudo quanto
detectávamos era o restolhar nocturno da floresta. Quisemos saber se ele era
capaz de nos adiantar mais alguma coisa. Calámo-nos todos, ninguém bulia uma
palha; deixámos ao ancião a tarefa de auscultar a noite. Eram muitos carros,
traduziu o soldado, de novo.
- Sim... Diz que vão passar por aqui - adiantou, depois da explicação do
autóctone.
Era uma coluna militar, concluímos com grande satisfação. Agora era apenas uma
questão de esperar um pouco mais. Era a minha primeira experiência com os
efeitos da poluição sonora: O que nós só ouvimos quase uma hora depois,
conseguia aquele homem escutar, até com pormenores, a dezenas de quilómetros de
distância.
Vislumbrei na penumbra dos faróis uma série de soldados a saltarem da viatura,
um outro saía da cabina na nossa direcção. Era o comandante da coluna.
Perguntou o que estávamos ali fazer, dirigiu-se para mim e para o piloto:
- Mas vocês são positivamente doidos!... Sabem onde estão?... - perguntou o
alferes.
Esqueceu os dois soldados. Eles não tinham nada a ver com aquilo, tinham-se
limitado a cumprir ordens. Se havia responsáveis naquilo, só podiam ser o
sargento-ajudante e o sargento magrinho da FBP. Era verdade: Eu acompanhara o
piloto porque queria, ninguém me tinha obrigado... Se calhar, era também o que
ele faria.
O alferes voltou à carga. centrou a atenção no mais graduado:
- Meu caro amigo, você esteve a milímetros de meter este pessoal numa alhada
levada dos diabos... Embora não se conheçam acções da guerrilha por aqui, o
gajo que vos autorizou a fazer esta viagem deve estar doido varrido. - Pôs a
mão no ombro do Assunção. - Foi uma sorte do caraças você não poder continuar o
caminho... mais uma meia dúzia de quilómetros por aquela estrada, vocês
entravam direitinhos pelo Congo dentro.
Regressámos na coluna à Chiaca. O resto da noite passámo-la a procurar dormir
em "cadeirões" de aduelas de barril. Talvez o conseguíssemos... Não
fosse a "serenata" que um bode nos dedicou toda a madrugada. Depois do suplício, os primeiros raios do dia foram uma benção. Contudo, com 27
anos na altura, minutos depois estava pronto para outra. Aquela longa noite, no
entanto, ficou para sempre. É que os "apertos" de momento passam com
o tempo, mas horas a fio com o credo na boca, são outra coisa... Às vezes
demoram a esquecer.
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AM 95 Cabinda |
Texto publicado por especial deferência de Aniceto Carvalho
e transcrito do seu site "Aviação Portuguesa" http://aerodino.no.sapo.pt/index.html