Era uma missão de rotina, não um
passeio, mas uma “visita”à zona do saliente do Cazombo no extremo sul, onde
Caripande era farol de vigia entre Angola e a Zambia.
O capitão Carlos Acabado, fizera um pequeno briefing na véspera e
combinámos que, sem um plano de voo muito rígido, seguiríamos o Zambeze até ao
ponto onde o rio se escapa das chanas luenas e corre para o mar por terras que
outrora foi tratado por Mapa Cor de Rosa.
Cinco e meia da madrugada , o “velho” Tomás, preparava os aviões com o
amor que o especialista dedica aos seus meninos. O MMA instalou o ninho das
metralhadoras . Ficavam elegantes e agressivos os T-6 “vestidos” a rigor!
Saímos da sala de operações, os aviões como destino. O Sol passeava-se
fresco nas montanhas do Macondo, ansioso por dar um beijo matinal à enfeitiçada
Calunda.
Em África gostava de voar bem cedo. Sentia-me no conforto de uma
alvorada cheia de força , que roubava ao sol menino a pujança do seu nascimento.
Apertei o paraquedas |
Alinhados na pista em formação cerrada, tinha sido o combinado, motor em
“boost” máximo, descolagem na direcção do Oeste. O Zambeze fica para trás ainda
na linha de subida. Estabilizámos no nível 02, sinal para passar a formação
aberta.
O Cavungo surge cinco milhas mais á frente, o pequeno quartel das forças
terrestres, sobressai da sanzala.
Enquanto me afastava do avião do comandante, o pensamento escapou para a presença daquele homem. Era diferente o capitão com o equipamento de voo vestido. Não lhe deixava sobressair a cor branca de neve do seu cabelo de sempre, ao meu conhecimento.
Quando o vi pela primeira vez, adoptei-o como o meu preferido. Voar com ele era sonho e desejo de todos os mais novos. O seu carácter, a sua amizade a confiança que transmitia! Naquele dia segui-o com orgulho, estava com o meu protector.
Enquanto me afastava do avião do comandante, o pensamento escapou para a presença daquele homem. Era diferente o capitão com o equipamento de voo vestido. Não lhe deixava sobressair a cor branca de neve do seu cabelo de sempre, ao meu conhecimento.
Cavungo - foto de José Carlos Macedo |
Sempre senti um respirar de magia,
quando sobrevoava o Cavungo. Ali, no seu trono de bambu, Nhakatolo rainha do
povo Luena, matriarca única em todo o território angolano, fora senhora
recebida em Belém por presidente português com honras de majestade. Ali nos
confins do mundo, uma rainha! Um povo em veneração, uma lenda noutros povos.
--Baixar para o nível 01, transmitiu
o chefe.
Descida suave para as margens do rio. Havia
indícios, por informações da DGS que, trilhos de guerrilheiros africanos,
poderiam estar a evoluir para o Chilombo, aquartelamento dos fuzileiros, na
outra margem.
Chilombo |
Na passagem pelo Chilombo os “fuzos”, vieram ao terreiro do quartel,
abanando os braços em gestos de convite para almoçar. Mesmo sabendo da
impossibilidade técnica, de se fazer uma aterragem, mostravam a sua principal
característica no teatro de guerra, eram uns bons compinchas os rapazes do
Chilombo!
Continuámos a acompanhar a marcha do rio, passar na Lumbala era destino
obrigatório. Um abanar de asas para cumprimentar os amigos do exército, duas
voltas apertadas sobre os tectos de zinco que cobriam as instalações, voltámos
em direcção ao destino. Gostava da Lumbala o Cap. Acabado! Ali viveu algumas das
histórias com que decorou o seu livro Kinda
e outras histórias de uma guerra esquecida,
obra de grau elevado na narração de humanismo, lealdade e carácter,que uma
guerra também pode mostrar.
Já li e reli, não me canso!
Chegámos ao canto Sul do saliente do Cazombo, a fronteira com a Zâmbia,
aparecia qual estrada em linha recta ao longo de dezenas de quilómetros.
Voávamos a cerca de mil pés acima do solo, francamente dentro do espaço aéreo
angolano. Parecia que o céu tinha aberto
as portas à nossa missão. Nem um ai de turbulência, tranquilidade total. Observava
o solo procurando qualquer carreiro por onde o inimigo fizesse travessia. De
vez em quando via rádio, trocava palavras de circunstância com o chefe da parelha.
O canto sul - foto de Eduardo Cruz |
Olhei para a carlinga do T6 do comandante. Sorridente, assinalou com o
polegar que tudo estava OK. Retribuí o sinal. Quando voltei à posição normal, o
meu espanto!.. Novelos de fumo por cima da minha asa esquerda davam ar de
arraial em festa de aldeia.
--Numero um veja nas suas nove horas!
--Numero um veja nas suas nove horas!
Acompanhei-lhe o olhar, os novelos eram
cada vez em maior número…
--Paquito, siga-me… ouvi nos
auscultadores!
Com um meio “tonneaux”e nariz em
baixo, entrámos numa descida louca. Ouvia a voz do chefe.
--Não se afaste de mim, lá para baixo
o mais rápido possível! Aquilo são granadas de anti aérea.
Estabilizámos a cerca de cem pés da
copa das árvores, ali estávamos mais em segurança, fechava-se o ângulo de
lançamento das anti aéreas. Seguia o chefe com toda a confiança que aquele
homem me inspirava. Como já o reconheci publicamente, no lançamento do seu livro,
no Instituto Cultural Verney em Oeiras, sentia-me a voar nas asas de um anjo.
--Paquito passe para a frente!
O Acabado começa numa dança frenética
por cima do meu avião, numa tentativa de detectar possíveis estragos na
fuselagem e asas. Na carlinga já lhe tinha comunicado que estava tudo bem.
-- Não noto nada de anormal, parece
tudo OK, rumo para o Cazombo, continue à frente!
Mais tranquilo, olho para as asas
procurando algum sinal de estilhaço. Na esquerda , ainda que muito indefinidos,
pareceu-me ver uns pequenos furos. Alertei o chefe, começa nova dança à minha
volta, procurava vestígios de fuga de gasolina. Confirmei que pela indicação
dos instrumentos estava tudo normal.
A pista do Cazombo, aparecia a cerca
de dez milhas. Entrada directa na final e rodas no chão. O pessoal do AM,
entretanto alertado por nós via rádio, esperava-nos com ansiedade.
Estacionámos os aviões, saí da
carlinga banhado em suor. A adrenalina e o sistema nervoso, fizeram estragos. Estragos
também sofreu a asa esquerda. Alguns furos de formas irregulares testemunhavam
o embate dos estilhaços, sem contudo terem atingido qualquer ponto nevrálgico
do avião. Um grito de alívio, a alegria vivida com abraços dos companheiros,
foram bálsamo para tranquilizar. O Capitão Acabado aproximou-se, selámos abraço.
--Desta já estamos “safos”, passámos
ao lado dela!
Cruzámos o olhar, sabia bem estar
longe do céu!
Foi no Alto Zambeze em Novembro de 1972.
Por:
A escrita do Júlio é afecto e emoção que a mim me comove e de que não posso abusar. O LESTE não podia ter encontrado melhores embaixadores: Acabado e Júlio. A ambos obrigado.
ResponderEliminarGrande Koca
ResponderEliminarSó hoje tive oportunidade de ler este relato de mais uma missão feita no Leste. Corredeira,voavas a asa de um PILOTO,que deu os seus melhores anos de vida à causa pela qual estivemos em África!Conheci-o em Saurimo,(H. de Carvalho) nos idos de 64,era eu um menino,vindo do Dala,para dar início aos estudos depois da primária.A sua extremosa esposa,Primavera,foi minha Professora de Ciências e "Matemática",escrevo assim,porque era assim ao tempo. Sei que sou suspeito quando falamos de África,talvez pela paixão que hoje vai desfalecendo com o tempo decorrido,o ocaso da vida,numa final longa e espero que seja de toque brando e calmo.Gostei de te ler,como sempre !O Aviador,Tenente Acabado,já nesse tempo tinha o cabelo prateado.Era simpático com a criançada e sempre que podia,ia ao colégio buscar a sua amada esposa.Decorridos uns anitos,foi instrutor de um curso no ambito da M.P.Mocidade Portuguesa,eu fiz parte desse curso,onde o conheci mais de perto.Mais tarde,fomos Companheiros até ao fim,embora de Esq. diferentes.Voei algumas vezes com ele...Deixo um abraço para AMBOS.-P.S.Com ele estarei no dia 21 do mês corrente em Oeiras,espero ver-te também.
ResponderEliminarObrigada pelas palavras que dirige aos meus queridos pais. Vera Acabado
EliminarQue prazer um reçito incroiavelmente bem feito dà prazer de ler até pareçe que faço um salto atràs de 53 anos!!quem me dera que isso me aconteçesse de novo!!SEM REGRETOS NEHUNS§§
EliminarUm relato perfeito, de tal maneira que nos sentimos no teatro das operações. Felizmente para ambos acabou em bem.
ResponderEliminarMuito obrigado Júlio, é sempre uma honra ler-te.
Um abraço a ambos, embora nem sequer tenha a certeza de os ter conhecido pessoalmente, isso porém é de somenos importância........
Muito bom.......Fiz esse voo com vocês, apesar de não ter saído do meu cadeirão. Obrigado, mil vezes obrigado. Um enorme abraço.
ResponderEliminarViver e aprender.Obrigado.
ResponderEliminarExcelente documento. No Batalhão 2899 (Ás de Espadas)habituamo-nos pelo menos a ouvir falar do Cap. Acabado pelas melhores razões. Mem´rias que para quem as viveu nunca mais esquece. Um dia no MUIÈ (Companhia 2635 do BCAV2899), estavamos a ser atacados e um T6 que se encontrava em Cangamba, mesmo desarmado, voou em nossa direção, dissuadindo o inimigo. Viemos a saber que o piloto teve grandes dificuldades por ter a cabine cheia de fumo ...!!! Acabou tudo em bem. https://www.youtube.com/watch?v=EeAbeyW0hnU&t=142s
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=EeAbeyW0hnU&t=142s