quinta-feira, 31 de julho de 2025

ENTERRANDO O INIMIGO: OS TÚMULOS NAZIS DE PORTUGAL

Os aviadores alemães, antes do acidente em Aljezur. Dois dos homens retratados não participaram da missão. (Foto cortesia de Eberhard Axel Wilhelm, via ADPHA)

Apesar de seu status como ditadura de extrema direita na década de 1940, Portugal nunca entrou efetivamente no conflito da Segunda Guerra Mundial. O primeiro-ministro António de Oliveira Salazar conduziu o país por uma rotina de equilíbrio tão hipócrita quanto bem-sucedida: na maior parte do tempo, os portugueses foram poupados de qualquer contato com a guerra. Houve, no entanto, uma exceção notável.

Era 9 de julho de 1943. Um comboio de navios aliados navegava para o sul ao longo da costa portuguesa, rumo ao Mediterrâneo, onde os Aliados pretendiam iniciar um ataque à Sicília. Uma escolta de dois caças britânicos garantiu a segurança da missão, até que um grupo de quatro bombardeiros alemães sobrevoou a França ocupada pelos nazis para interceptar e, com sorte, afundar os navios de suprimentos. A batalha aérea durou pouco mais de uma hora, após a qual os bombardeiros alemães foram forçados a recuar — todos, exceto um, que havia sido abatido nas falésias perto de Aljezur.
Aljezur, na época, era uma Vila com pouco mais de 5.000 habitantes, cujo único contato com a guerra se dava por ondas de rádio. Luís Proença, que tinha seis anos na época, lembra-se de passar as noites no centro comunitário, aconchegado em volta do rádio, acompanhando as notícias da guerra na BBC. As reportagens, disse Proença, favoreciam esmagadoramente os Aliados. "Víamos os alemães como inimigos [...] então foi quase como uma vitória [quando o avião caiu]. Era o inimigo que havia caído."
Moradores de Aljezur inspecionam os destroços do avião alemão. (Foto cortesia da ADPHA)

Inimigo ou não, os moradores da cidade entraram em ação. "[Meu avô] cuidou de tudo", disse Ernesto Silva sobre Vitorino Cuco , o líder da guarda que chegou primeiro ao local. "Primeiro, porque era seu dever profissional; segundo, porque ele era uma boa pessoa."
Cuco esperava um resgate, mas o avião destruído queimava tão intensamente que era impossível se aproximar. Mais tarde, quando chegou a hora de remover os corpos, Cuco liderou uma pequena equipe. Quando um caminhão de transporte não conseguiu subir os penhascos, eles usaram uma carroça de bois. Quando não conseguiram alcançar um dos corpos, amarraram cordas em um laço e improvisaram. Apesar da cena infernal, eles nunca vacilaram. Eles haviam decidido levar os corpos para a igreja local e conseguiriam a qualquer custo.
Os sete aviadores alemães repousam na igreja de Aljezur. (Foto cortesia da ADPHA)

Numa sociedade que passou a confundir funerais com cerimônias comemorativas, esses soldados queimados devem ter criado um dilema agonizante. Emocionalmente, instintivamente, não queremos nada além de atacar, evitar os mortos. Racionalmente, porém, nós percebemos como guardiões de uma superioridade moral ilusória, uma posição que nos proíbe de jogar esses corpos em uma vala e dar por encerrado o assunto.
Quando a capital portuguesa foi telegrafada sobre a situação, 10 horas após o acidente, os sete aviadores nazistas já estavam em segurança na igreja, aguardando a chegada de sete caixões para levá-los ao subsolo. Eles só seriam identificados com precisão mais tarde naquele dia, quando o primeiro representante alemão chegou da embaixada de Lisboa. Muitos outros o seguiriam nos dois dias seguintes. Os moradores de Aljezur, que nunca tinham visto um nazi pessoalmente, de repente se encontraram com embaixadores alemães, representantes do Partido Nazi e da Juventude Hitleriana, fotógrafos oficiais e pelo menos um pastor protestante.

O funeral, no cemitério de Aljezur, conta com a presença de moradores locais e membros de uma comitiva alemã. (Foto cortesia de Eberhard Axel Wilhelm, via ADPHA)



O funeral ocorreu no dia 11. Os sete corpos, em sete caixões desiguais (de mogno, revestidos de chumbo) trazidos de uma cidade próxima, foram enterrados no cemitério local, com os túmulos identificados por uma simples cruz de madeira. Houve honras militares e saudações nazis, após as quais a comitiva alemã retornou à embaixada, satisfeita com o sepultamento respeitoso de seus irmãos de armas.
Mas a Alemanha nazi não havia terminado com Aljezur.
Cinco meses após o funeral, o presidente da câmra recebeu uma notificação: o próprio Führer desejava condecorá-lo, e a outros três homens, com a Ordem da Águia Alemã, uma condecoração diplomática geralmente concedida a diplomatas estrangeiros por sua simpatia pela causa nazi. Francisco Albano de Oliveira, presidente da vila, Amândio da Luz Paulino, vice-presidente, José Viriato França, líder da célula local da Legião Portuguesa, e Vitorino Cuco, líder da guarda local, receberiam suas condecorações, compostas por uma insígnia e um diploma assinado por ninguém menos que Adolf Hitler, no final de dezembro.
Uma coisa era enterrar um cadáver; outra, completamente diferente, era ter Hitler assinando um bilhete de agradecimento glorificado. Ernesto Silva, neto do guarda Vitorino Cuco, disse que seu avô ficou completamente constrangido com a condecoração. "Meu avô nunca gostou disso", disse ele em uma entrevista , "e sempre dizia que não havia honra em ser condecorado por um homem mau". Tudo o que ele fazia era lidar com os corpos de seus semelhantes com dignidade e respeito — ele nunca pretendeu entrar para a história como amigo do regime nazi.
O funeral, no cemitério de Aljezur, conta com a presença de moradores locais e membros de uma comitiva alemã. (Foto cortesia de Eberhard Axel Wilhelm, via ADPHA)




Na melhor das hipóteses, poderíamos chamar a este episódio de uma falha de comunicação; na pior, de uma tentativa deliberada de politizar o altruísmo de participantes relutantes. Quando o povo de Aljezur se dispôs a enterrar sete jovens que haviam caído do céu, estava simplesmente preservando uma forma milenar de decência humana básica. Queriam homenagear os homens; foram os alemães que aproveitaram a oportunidade para homenagear o regime.
Tal é o risco associado à escolha de lidar com mortos controversos, e pode muito bem ser a razão por trás da nossa hesitação generalizada em enterrar, e portanto homenagear, indivíduos cujas ações consideramos atrozes. Seria terrivelmente doloroso para nós ter a nossa bondade mal interpretada. Seria, talvez acima de tudo, enfurecer-nos sermos considerados aliados de regimes e ideologias violentos.
A falésia onde o avião alemão caiu em 1943. (Foto de Rui Gaudêncio para o Público)




Não há garantia de que o mundo em geral respeitará o sentimento por trás dessas isenções de responsabilidade — não há garantia de que almas ultraviolentas não se aglomerarão nesses túmulos em busca de validação, ou que membros do público de coração partido não se voltarão contra eles com uma fúria justificada. Não há garantia de que esses túmulos algum dia se misturarão às comunidades que os abrigam.
As sete sepulturas mantêm-se intactas no cemitério de Aljezur.(Foto de Rui Gaudêncio para o  Público



A Vila de Aljezur teve sorte. Hoje, sete lápides marcam o local onde antes ficavam sete cruzes de madeira. Os aviadores permanecem intocados, mas o espaço que ocupam no cemitério local adquiriu um novo significado, que transcende em muito seus nomes individuais. É em seu local de descanso que os moradores se reúnem, uma vez por ano, para lamentar as vidas perdidas nas Guerras Mundiais. São portugueses, alemães e britânicos, e em algum lugar nas semelhanças entre suas línguas maternas, concordaram em rejeitar a versão nazi da história. Fascistas não são bem-vindos. Aqueles dispostos a aprender com a história, no entanto, são.
No fim das contas, talvez seja tudo o que podemos esperar: um futuro onde possamos conciliar a necessidade humana de um enterro respeitoso com a dor real causada por alguns dos mortos que escolhemos acolher de volta em nossas comunidades. O processo de aprendizado certamente será árduo, doloroso e, às vezes, contraditório.
Então, é melhor começarmos agora.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

NÃO HÁ GUERRAS BOAS OU MÁS, ELAS SÃO SEMPRE ACTOS DE TERROR E SOFRIMENTO.


As crianças, sempre as crianças, as mais indefesas, os inocentes perdidos no meio de tanta desgraça e crueldade. Estas imagens lembram-me outros tempos!... 

Moçambique 1971/1972
Metangula, Lago do Niassa, VilaCabral, um dos locais lindíssimos em África.
Uma imensidão de água com 560 quilómetros de comprimento e 80 quilómetros de largura que banhava também as margens de outros dois países, o Malawi e a Tanzânia. 
Toda a envolvente natural, as pequenas praias, as matas, a vida selvagem e Marinha eram de uma grande beleza, que transmitia uma sensação de paz, mas que a guerra com todo o poder de destruição e morte também não poupava. 

Os “ÍNDIOS” nas suas andanças pelo território a norte de Moçambique faziam aqui algumas paragens. 
Recordo-me que no topo norte da pista de aterragem lá estava sempre uma caravana pertença de um casal rodesiano que ali faziam a recolha de uns peixes exóticos apenas existentes no lago do Niassa, e que comercializavam fazendo a exportação via aérea para outros países através da Rodésia. 
Nas operações “heli” transportadas que ali fazíamos com os fuzileiros nas zonas de Lunho e Nova Coimbra, sempre que terminavam já tarde pernoitávamos em Metangula nas instalações da Marinha, regressando na manhã seguinte a Vila Cabral. 
À tardinha no final das operações após as inspecções aos Helicópteros, era feito o reabastecimento de combustível com a bomba manual. 


Um bidão de 200 litros era colocado junto de cada “Zingarelho”, uma percentagem do jota no fundo dos bidões não podia ser utilizado devido às impurezas, e evitando desperdício era dado às crianças para iluminação das suas palhotas, e outros fins.
A miudagem daqueles aldeamentos acostumadas já a esta rotina de movimentos das tropas e aviões, tentavam sempre tirar algum proveito na luta pela sobrevivência e fazer frente à miséria tentando a sorte por conseguir algum "espitrólio" como lhe chamavam. 

Dava dó vê-los em grande correria atropelando-se uns aos outros para conseguirem melhor posição junto do bidão, descalços com as roupas em farrapos, com panelas de alumínio, latas ou outros utensílios que tivessem à mão tentando apanhar o máximo que pudessem.
No grupo havia um albino que sempre me deixava confuso e pensativo, um preto completamente branco de cabelo amarelado, que se destacava no meio dos outros pretos apenas pela diferença da cor, eu achava esquisito. 
Na sofreguidão alguns tropeçavam entornando o pouco que já tinham, ficando todos regados com jota desde a cabeça aos pés, apesar de nós termos algum cuidado para os servir sem os molhar, mas era difícil.
Um cenário que tinha alguma graça, mas que transmitia um grande sentimento de compaixão. 
Estou certo que outros dos meus camaradas se recordarão destes momentos nas nossas passagens por Metangula!
A luta dos miúdos para pouparem umas "esquinhentas" que tanta ajuda lhes fazia na miséria que passavam.
Por outro lado este acto desagradava aos “cantineiros” porque prejudicava o seu negócio, pois eram menos uns litros de petróleo que vendiam e por isso não apreciavam nada esta dádiva dos Índios às pobres crianças tão necessitadas. 
Momentos que não se apagam na memória, e que imagens dos conflitos actuais que hoje nos entram casa dentro através da T.V., trazem à lembrança estes e tantos outros dramas e desgraças testemunhados por nós durante dois anos naquela África enfeitiçada e inesquecível. 


A guerra, qualquer guerra, para quem a vive e sente na pele, ela é dura feia e cruel, mas para aqueles que apenas a vêm nos filmes talvez aí possam encontrar alguns contornos de romantismo. 

Basta de ódio, a paz o amor e cooperação é o que o Mundo precisa.

Francisco Serrano Mecânico de Helicópteros
Moçambique 71/72



 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

UMA HISTÓRIA DE ÁFRICA, UM MENINO CHAMADO DAKOTA


O Dakota é o mais célebre avião de passageiros de sempre.
Ainda há alguns a voar na América do Sul. Tive o prazer de, em Angola, voar neles cerca de 12 anos e 10.500 horas !
Um dia, em plena guerra, (na qual estive envolvido até ao pescoço), na carreira do Norte, o Administrador veio ao campo de aviação e pediu-me:
-"Comandante temos uma mulher em perigo de vida, há três dias em trabalho de parto, tem de ser levada para o hospital de Carmona (Uige sede de província) quanto mais cedo melhor! "
Tínhamos de ir a Maquela (30 minutos) e voltar.
Acelaramos tudo e na volta deitamos a moça (18 anos) na bagageira da frente num colchão de espuma, da ambulância... e toca a andar, depressinha.
Coloquei o Criado de Bordo (mais tarde Comissário de Bordo) o meu compadre Ramos Queva (negro) a cuidar da moça.
A meio da viagem (1/2 hora) ouço o Queva aflito:
-senhor Comandante está a nascer! Ó Ramos, ajuda, sabes como é...tens nove filhos, que viste nascer em casa!
Elucide-se que eu era o padrinho do número nove!
Daí a uns minutos:
-Eh, já cá está, é um menino!
Abriu a porta e anunciou aos passageiros:
-É um menino!
Recebeu uma salva de palmas.
Resperei fundo, reduzi a velocidade e dez minutos depois começamos a descer para Carmona e lá foram eles para o hospital...como convinha.
Carmona

Fiquei intrigado com a pressa do nascimento, mas percebi porquê.
A viagem era feita a mil pés (300 metros) de altitude por baixo das nuvens (não havia ajudas rádio) e áquela hora, o aquecimento provocava bastante turbulência.
Foram os abanões que provocaram o parto.
Passados uns tempos o Ten.Cor. Jacinto Medina, meu director, chamou-me á DTA e disse-me:
-Carvalheira, o Governador Geral soube do parto no avião e quer que eu seja o padrinho e você como testemunha!
Assim no sábado, vai á Damba como verificador de pilotos (eu era piloto chefe do Dakota) e baptiza o rapaz em meu nome porque eu vou para Lisboa hoje á noite. Já está tudo tratado e tem aqui a procuração (nesse tempo a certidão de Baptismo era a certidão de Nascimento).
Lá fomos á igreja e baptizámos o miúdo.
Ao assinar a certidão (pelo Medina) li e comecei a rir-me como um perdido.
O miúdo chamava-se, Jacinto António Dakota DTA Capulenda. Nem mais nem menos !
Regressei alegre e divertido a Luanda.
Uns dois ou três anos depois vem o administrador, acompanhdo de uma moça e pela mão um rapazinho bem parecido!
-Beija a mão ao senhor Comandante teu padrinho.
-Ó Joana, não é senhor Comandante. É senhor meu compadre!
Por engano do administrador eu é que era o padrinho (na certidão e na pia Baptismal). 
Depois vim para a TAP e nunca mais os vi.
Bonita história, verdade ?

Do Comandante António Rebelo Carvalheira,  que foi Piloto da FAP (F84), Comandante na DTA e na TAP
Publicado no Jornal de Famalicão em 1Jul2021