Campo de desalojados de guerra em Luena – foto de Peter Williams |
Ao cumprir uma missão para as Nações Unidas em Angola, em 1992, houve uma situação que ficou gravada na minha memória, e na minha pituitária, para sempre: – a visita ao campo de desalojados de guerra, em Luena.
A ida ao Campo de desalojados foi um pedido disfarçado de convite, feito pelo responsável pela delegação de Luena da agência ONU – World Food Program (WFP) – o senhor Carlos S.
O Carlos era um simpático peruano que geria as instalações do WFP perto da antiga linha férrea. Homem dos seus trinta e poucos anos, estatura mediana e com demasiado peso, vestia-se sempre com calças de ganga e camisa axadrezada. Como não tinha pessoal de apoio em quantidade suficiente, pedia ajuda a quem ia conhecendo, para levar a bom porto todas as iniciativas que conduzia.
Naquele dia Carlos necessitava de ajuda para distribuir géneros alimentícios no campo de desalojados de guerra. Concordei em ajudá-lo enquanto decorriam uns voos de longa distância, que iriam levar cerca três horas a regressar. A minha boa acção, não só respondia a um pedido de um amigo da ONU como me possibilitava ter uma outra perspectiva da sociedade que me rodeava.
Naquele dia Carlos necessitava de ajuda para distribuir géneros alimentícios no campo de desalojados de guerra. Concordei em ajudá-lo enquanto decorriam uns voos de longa distância, que iriam levar cerca três horas a regressar. A minha boa acção, não só respondia a um pedido de um amigo da ONU como me possibilitava ter uma outra perspectiva da sociedade que me rodeava.
Carlos foi buscar-me ao aeródromo de Luena no seu velho jeep descapotável. Afastámo-nos da Cidade e, muito antes de chegarmos ao campo de desalojados, comecei a sentir um desagradável cheiro a azedo no ar. Quanto mais nos aproximávamos, mais intenso aquele desagradável odor ficava. Parecia que cheirava a vomitado. Quando finalmente chegámos à estação de caminho-de-ferro abandonada, o cheiro era tão intenso, que fiquei com a sensação que aquela gente vivia dentro de um contentor do lixo, num dia de muito calor. Tentei disfarçar o meu desconforto e sorrir. Para ser simpático, balbuciei algumas palavras no dialecto local e apertei a mão a quem me queria cumprimentar. Disse, em silêncio, a mim próprio:
– “Aguenta o primeiro embate que daqui a um bocado a tua pituitária já se habituou.”
O Carlos ia-me explicando o que eu via, enquanto oferecíamos os sacos de farinha que havíamos trazido no jeep.
Estavam ali entre 7.500 e 8.000 pessoas; ninguém sabia o número exacto. Eram como zombies, num deambular triste pelo recinto sem qualquer ocupação ou destino. Por todo o lado ouviam-se pessoas a tossir. Uma tosse cavernosa indiciadora de maleita. Sempre que tocava em alguém, era assaltado pelo pensamento que, a seguir, teria de tomar um duche de descontaminante. Não era por snobismo ou segregação, mas porque aqueles carentes desalojados estavam imundos e doentes. O risco de ser contagiado por alguma maleita era realmente elevado.
Contudo, continuei a cumprimentar toda a gente, porque senti que mereciam a minha consideração. Quase senti vergonha de mim próprio por pensar em evitar aquelas pessoas. Ali ninguém tinha optado por aquela vida miserável; todos tinham sido empurrados para aquele local pela força das armas. Dentro do grande edifício fabril, as solas dos sapatos colavam-se ao chão de tão sebento que estava.
A sensação que eu tinha e o ruído que as minhas botas faziam, eram como se estivesse a andar num soalho coberto com papel para agarrar moscas.
Havia trapos pendurados a servir de parede para separar famílias. O telhado tinha grandes buracos e, devido ao mal estado de conservação da infra-estrutura, chovia em quase todos os compartimentos. Abundavam rolos de plástico com o logotipo do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados –UNHCR – com os quais se tentava colmatar a ausência de vidros nas janelas e telhas na cobertura. Contrariamente ao meu desejo, a minha pituitária recusava-se a habituar-se ao cheiro do local.
Era um cenário de miséria humana, que me marcou e me faz ter muito respeito pela temática dos refugiados e desalojados de guerra. Seres humanos como nós, que não fizeram nada por merecer tais condições. Só tiveram o azar de nascer, ou estar, no local e altura errada. Fui assaltado por uma vontade estranha de lhes pedir desculpa, por usufruir de melhores condições de vida do que eles.
O Carlos prescindia quotidianamente do seu bem-estar para ajudar os outros, colocando-se ao serviço do próximo.
Como militar, entendia bem o que era vocação para servir um bem comum; mas os voluntários da ONU, seus programas e agências, passaram a merecer toda a minha admiração e respeito.
Por:
Os editores do Blog agradecem ao Sr.Ten.Coronel Paulo Gonçalves, a cedência das suas estórias vividas em terras do Moxico. Vinte e poucos anos após, representando uma nova geração da FAP, desta vez em missão humanitária da ONU, os seus relatos fazem-nos retroceder no tempo e recordar algumas das vivências, que marcaram a nossa geração. Bem Haja.
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