Se,
nos idos anos de 1969, alguém me dissesse que, quarenta e tal anos depois, eu
iria escrever qualquer coisa sobre o Major Tomás, vulgarmente conhecido como “O
Tomás”, eu diria, sem receio de desmentido, que essa pessoa estava com
problemas na cabeça.
O
Tomás ou o Major Tomás era, em 1969, comandante do GITE (Grupo Instrução de
Técnicos Especialistas), na Base Aérea 2, na Ota, Alenquer.
Eu fui um dos muitos mancebos que cumpriram o serviço militar na Força Aérea e conheci muito bem o Tomás.
Eu fui um dos muitos mancebos que cumpriram o serviço militar na Força Aérea e conheci muito bem o Tomás.
Acabada
a recruta em Dezembro de 1969, passámos à categoria de “alunos”, futuros
especialistas e é aqui que entra em acção o terror do “Zé especial”.
“Eu
como especialistas ao pequeno almoço”, “o especialista para mim é papel”
(enquanto amarrotava uma folha de papel entre as mãos), “ò aluno, eu estou-te a
ver”, “tu aí, anda cá – reforço fim de semana”, “anda cá, ò querido aluno, anda
cá. Carecada já”, eram algumas frases com que nós éramos mimoseados pelo dito
senhor, cuja autoridade era superior à do comandante da Base, ninguém o
duvidava.
Quando,
em formação de 4 homens por 10 homens, nos dirigíamos, marchando, para as
aulas, situadas cerca de 1 km das nossas camaratas, às 7,45 h da
manhã e víamos a Renault4, com a matrícula AM-60-24, a malta até
tremia.
Havia
sempre alguém, uns metros à frente de nós, que nos dizia (como conta a canção):
“Vem
aí o Tomás”.
E,
como que por encanto, o amontoado de 40 alunos mais ou menos disperso, de
imediato se transformava numa formação, com o passo certo e tudo, marchando
garbosamente e com os bivaques postos correctamente na cabeça. Era pouco
frequente, mas acontecia que ele entrava subitamente numa aula, às vezes nem
cumprimentando o “professor” (normalmente um sargento do quadro permanente) e,
apontando com o dedo a um dos alunos, dizia: ”Tu, aluno, carecada, já”.
Alunos a caminho do GITE |
Morreu
o Tomás.
Mais
de 40 anos depois, a notícia do seu falecimento deixa-me com sentimentos algo
confusos. À época, ele era o terror da malta e era, mesmo, odiado, mas só
enquanto alunos, naqueles 11 meses em que estávamos a tirar as especialidades.
Porque depois, apesar de não nos convidar para beber um copo, não nos chateava
absolutamente nada.
Não
precisava de justificações, mas as carecadas e os reforços de fim de semana
eram por as botas estarem mal engraxadas, por o cabelo estar comprido, por
irmos com o passo trocado, eu sei lá que mais.
Compreendo agora que a disciplina que ele impunha era, se calhar, imprescindível. Era tudo malta muito nova, entre os 17 e os 20 anos, na força da juventude. Talvez fosse, mesmo, necessária esta dureza.
Encontrei-o, uma única vez, em 1980, em Lisboa, na Av. Fontes Pereira de Melo, no então edifício Europeia. Eram 9 horas da manhã. Entrei no elevador e ele entrou logo de seguida. Mantinha o mesmo porte altivo, superior com que nos brindava 10 anos antes.
Olhei para ele e em seguida, tanto tempo quanto demorou o elevador a ir do piso 0 ao piso 2, o meu pensamento voou e as mais variegadas lembranças chegaram em catadupa. E vi o ficar um fim de semana inteiro na Base de castigo, as carecadas, a carrinha Renault 4L AM-60-24 , os roubos dos bivaques à entrada para a caserna, as aulas no GITE, o sargento Teixeira da Silva e a sua peculiar frase das
2.ªs Feiras: “ o pessoal não pode ir às gaiatas, senão,
não apanha a “120” (querendo significar que os sinais morse não eram apanhados
correctamente por nós, futuros operadores de comunicações, a 120 caracteres por
minuto), o sargento BT das teleimpressoras, Angola, Henrique de Carvalho,
Cazombo, Cuito Cuanavale, Luso, e…e…e…
Compreendo agora que a disciplina que ele impunha era, se calhar, imprescindível. Era tudo malta muito nova, entre os 17 e os 20 anos, na força da juventude. Talvez fosse, mesmo, necessária esta dureza.
Encontrei-o, uma única vez, em 1980, em Lisboa, na Av. Fontes Pereira de Melo, no então edifício Europeia. Eram 9 horas da manhã. Entrei no elevador e ele entrou logo de seguida. Mantinha o mesmo porte altivo, superior com que nos brindava 10 anos antes.
Olhei para ele e em seguida, tanto tempo quanto demorou o elevador a ir do piso 0 ao piso 2, o meu pensamento voou e as mais variegadas lembranças chegaram em catadupa. E vi o ficar um fim de semana inteiro na Base de castigo, as carecadas, a carrinha Renault 4L AM-60-24 , os roubos dos bivaques à entrada para a caserna, as aulas no GITE, o sargento Teixeira da Silva e a sua peculiar frase das
Aula de comunicações |
Fantástico:
10 anos depois, já casado e com filhos, depois de ter estado no leste de Angola
26 meses, ainda senti um frémito no corpo. Não, não foi, obviamente, medo. Foi
um sentimento que não consigo definir com clareza ainda hoje: talvez um misto
de saudade, raiva, admiração, superioridade, inferioridade , não sei.
O grande Tomás no mesmo elevador que eu, sem me conhecer e sem me dizer “ò aluno, eu estou-te a ver”.
O grande Tomás no mesmo elevador que eu, sem me conhecer e sem me dizer “ò aluno, eu estou-te a ver”.
Morreu
o Tomás
Paz
à sua alma!
Nota dos editores: O Ten. Cor. Raul Tomás faleceu em 09 Março de 2012.
Nota dos editores: O Ten. Cor. Raul Tomás faleceu em 09 Março de 2012.
esta crónica fez-me lembrar velhos tempos. Não te sabia com veia poética, Baptista. Gostei do texto, mas acabo por ter pena que o Tomás tenha morrido. Abraços a todos.
ResponderEliminarAM-60-24 salvo erro
ResponderEliminarNão sei se o comentário anterior ficou gravado ou não, por via das dúvidas repito:
ResponderEliminarEu sou da 1ª de 69 e penso que nessa data o Tomás já era tenente coronel, quem era major era o Noronha. sobre a matrícula do carro tenho quase a certeza que era o AM-40-60 só não juro que a ordem seja esta, também podia ser 40-60... Um abraço a todos especialmente aos OPC's
Gil Milheiriço
AM-60-24 de certeza
EliminarGostei do texto e também senti arrepios. Não de raiva mas sim de saudade.
ResponderEliminarO Maj. Tomás foi mesmo figura ímpar. Eu, na qualidade de especialista de abastecimentos, prestei serviço no B.C.P - Belas - Luanda - e o comandante coronel Rafael Ferreira Durão ainda o achava mais violento e mais rude que o Tomás. Dois militares que muito me marcaram.
O Texto está muito bem escrito e corresponde à realidade dos factos. Os tempos eram como eram.
Que descansem em PAZ.
A sua recruta Martins já foi das pesadas. A minha em 62 foi uma belezura; e porquê? Porque o Cdte da recruta, MajPilNav. Branco, sendo mais antigo do que o Tomás não concordava com as ideias deste. O Maj. Branco dizia que a recruta para especialistas tinha por fim ministrar o essencial de uma formação militar a mancebos que iriam ter uma formação técnica nas diferentes especialidades da Força Aérea, cuja função não seria o combate no terreno. Esta discrepância hierárquica, a escola de recrutas dependia do GITE, passou a ser tida em conta nas recrutas subsequentes por reclamação do Tomás. A partir da 1ª recruta de 63 a coisa começou a ser mesmo dura com a construção do campo de obstáculos pelos próprios recrutas, as marchas nocturnas, as saídas para o campo aos fins e semana. etc..
ResponderEliminarO seu mentor: um aprendiz de Tomás, o Alf. Coelho Dias.
AM -60 - 24 Sim Senhor. Paz à sua alma e parabéns pelo testo que transcreve a realidade.
ResponderEliminarAbraço do 1508/69 Neves
http://inillotepore.blogspot.com/2018/09/o-tomas-da-base-aerea-da-ota-1972.html
EliminarParabéns por este delicioso naco de prosa. Tomei a liberdade de o expor no meu blogue "IN ILLO TEMPORE" e acrescentei-lhe algo da minha lavra. Abraço de camaradagem. todos somos luz e sombra, trigo e joio, bem e mal. Ninguém é perfeito. Também fui vítima desta criatura mas nesta hora olho com benevolência e certo "carinho" este homem condecorado pelos feitos heróicos nas famosas cheias de Alenquer e com um espírito militarista exacerbado. Mas eram assim os tempos. José Manuel F Leite de Sá - estive na BA2 TOCART em 1972
ResponderEliminarGostei do texto,é uma belíssima "fotografia". Para mim foi,a tantos anos de distância,um privilégio ser subordinado do Sr Maj. Tomáz. E sim , AM-60-24. Que ele e todos os nopssos camaradas de armas ,descansem em Paz.
ResponderEliminarMaravilha de texto! Tal e qual... O Tomás presenteou-me com cinco dias de prisa, cinco de detenção, fora as carecas, reforços e fins--de-semana. Por uma unha negra que não fui expulso... Percebi, mais tarde, o porquê. Os gajos tinham-me preparado um caldinho, em Moçambique. Ainda bem porque gramei. Júdice, 1.a de 69 OPC
ResponderEliminarNa 1a de 68 já era Tenente Coronel, o terror dos alunos.Paz á sua alma.
ResponderEliminarAgora que foi como nós iremos, restam-me memórias más. Fui da 1.a se 70 e, como chefe de turma cumpria-me levar o pelotão para as aulas. Nós que por lá andamos, sabemos como na primavera a Ota era enrregelante. Assim, mantendo o pelotão em formação. permitia-se as mãos nos bolsos, até que, da janela de correr daquela silenciosa 4L azul, AM-60-24, lá vinha aquela maldita frase: hó Oh aluno, Oh aluno, Oh paneleiro, o teu número??? - e pronto, lá ia mais fim de semana... que para um puto da província com 17 aninhos era uma trgédia. Mas foi assim que crescemos e nos tornamos Especialistas e Homens. Bem hajam Especialistas de ontem e de hoje.
ResponderEliminarFrncisco Ponte MMA
O Ponte nao es do norte nao sei bem se de vila do conde ou por ai pert?
EliminarSerrano 1ª se 70
Vou começar por dizer que não passei pela Ota,B.A.2,fui directamente para Sintra.Porém,tive ao mesmo tempo um Amigo que estando a passar por lá,na recruta e sermos como irmãos,pois fizemos a nossa amizade em tenra idade,nas longínquas terras do Leste Angolano...mais pròpriamente no Dala,hoje Lunada-Sul.Eu vim para a pilotagem,ele,talvez por influência,seguiu as minha peugadas mas,para especialista.Já eu estava a meio do curso Em Tancos,B.A.3 e,íamos tendo contacto.Como ULTRAMARINOS,as nossas famílias directas estavam lá longe e,a nossa casa de FIM de SEMANA,era a BASE!Os cursos eram longos e o pré era curto,muito curto...eu tinha mais 500(2,5€) escudos de risco de vôo.De casa,não nos podiam transferir dinheiro...trouxemos o máximo que podemos por transferência oficial 4000 escudos(20€).O tempo ia correndo lentamente.Ele na Ota ,ainda tinha muitos companheiros,eu em Tancos,estava orgulhosamente só!À 6ª,depois das 16h00,a Base entrava num silêncio quase absoluto.Aeronaves parqueadas,tirando um ou outro vôo,ou os alertas,o fim de semana tinha começado.Os alojamentos de Alunos pilotos,estavam desertos até 2ªfeira!Sala de estar,bar etc estavam por minha conta.Tinha TV e máquina de café,frigorífico uns cadeirões e umas mesas,Aqui passava o meu serão a estudar,escrever para a Família, namorada, amigas e amigos.Por vezes à noite ia até ao clube de Especialistas,onde era o único ALuno Piloto com acesso directo!O que queria dizer,se estivesse sentado e não houvesse lugar para algum especialista,não me levantava para lhe dar o lugar...também era raro o clube estar cheio.Depois de o convidar para vir à minha Base,ele preferiu que eu fosse à Ota,por várias razões, e assim foi,eu já lá tinha passado,mas a voar.Um belo dia,já era verão,lá fui eu.Ao chegar à 1ª porta de armas,apresentei-me e lá chamaram o 888,Sérgio Bastos,hoje vive na Alemanha e mantemos contacto.Ele já me esperava e em escassos minutos,apareceu para me receber.Depois dos primeiros momentos e sadaudações lá fomos para a 2ª porta d'armas,tínhamos andado alguns passos porta dentro ,lá vinha a 4L ao nosso encontro,diz o Meu amigo Bastos,vem ali o meu Cte,o "pai Tomás"- e eu,ok!Saiu da viatura,saudamo-nos e,claro, ele,além do conhecimento da minha presença, tínha dado autorização para eu ali passar o dito fim de semana.Deu-me as boas vindas e,foi logo dizendo que aqui a disciplina é para cumprir... começam as perguntas da praxe,despediu-se e foi-se como tinha chegado.Volvidos uns anos,em Paço d'Arcos,vou a passar pelo Jardim ,em sentido contrário aparece o pai Tomás,que me fixa e a dois passos levanta o dedo e diz:O Sr.não esteve na Força Aérea,não esteve?-Ao que respondi,que sim!-Já o vinha a observar lá atrás e ,até disse à minha mulher que o conhecia.Então esteve na Ota!-Aí,tive que lhe dizer que não e,contei-lhe o que anteriormente descrevi..!Então, retorquiu muito direito,a mim ninguém me passava despercebido na minha BASE!Apertou-me a mão,despedindo-se e, nunca mais o vi.
ResponderEliminarGostei do texto e fez-me recordar peripécias como OPC em 72 no AB4. Para além, como é óbvio, das cenas do, na altura tenente Coronel Tomás. Estávamos em Outubro 1970. Recordo também de algumas cenas co o Batista. Enfim, recordações.
ResponderEliminarLima
Excelente texto.
ResponderEliminarParabéns!
Jorge Costa
748/67 MMA
Gostei mto do texto e embora tenha Estado apenas durante a recruta na BA2. 2/65 pois fiz o curso em Montejunto ainda hoje recordo os nomes de Major Tomás. Major Noronha. Tente Mineiro e Alf.Coelho Dias.
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