quinta-feira, 5 de novembro de 2020

EMBARQUE PARA ANGOLA E AS MESSES...SEMPRE O VELHO PROBLEMA.

Boeing 707 na placa do AB4


As situações que vou relatar ocorreram em 1974 no AB4 Aeródromo Base nº.4 - Henrique de Carvalho - Angola.
Depois de um voo de cerca de nove horas no Boeing 707 da FAP, aterrei na BA9-Luanda, no dia 30 de Maio de 1974 , após a Revolução dos cravos ! Durante a espera para o embarque rumo á Guerra decorriam no Aeroporto, protegido pelos Soldados Paraquedistas, manifestações de Jovens, a maioria estudantes, que gritavam: nem mais um soldado para o Ultramar! Fim à guerra! 
Toda esta situação atrasou o voo, alguns militares fugiram, incluindo PAs, depois, de os manifestantes terem arrombado a rede! Os Paras nada faziam, não porque fosse uma tarefa perigosa, ou difícil, mas, porque não queriam, e tal como eu, até estavam a gostar, como é óbvio! Eu estava encostado a um carro. Estava triste, muito triste, desanimado. Não só por ir para a Guerra, para o desconhecido, que ficava a mais de uma dezena de milhares de quilómetros, mas, principalmente, porque estava só! No meio de centenas de pessoas, eu, estava só. E sentia-me só! Sem ter as pessoas a quem mais amava para me despedir! Então apercebendo-se do meu estado de espírito chegaram junto de mim duas lindas moças, estudantes universitárias, que repararam que eu estava visivelmente abatido, só, e triste, tentaram dar-me ânimo, e conseguiram! Ficámos um bocado na conversa e uma das jovens, ofereceu-me uma foto e ofereceu-se para ser minha madrinha de guerra!
Quando houve ordem para embarcar, já tinha alguém para me despedir! Assim fiz! Despedi-me das novas amigas, e seguidamente dirigi-me para o avião. Fui o primeiro a embarcar! Ouvia muito barulho na placa de embarque, mas não me incomodava! Quando os outros militares começaram a entrar no avião já eu dormitava!

No dia da chegada à BA9
Chegado ao Aeroporto de Luanda, abrem-se as portas do avião, para o desembarque, e lembro-me perfeitamente, da sensação que tive! Senti a garganta a queimar de tanto calor, um calor insuportável como nunca tinha sentido! Esqueci as regras, a disciplina, e despi o blusão, tirei a gravata, arregacei as mangas e desatei a correr para uma dessas maquinas de água fresca e ali fiquei a lavar a cara e a beber aquela água quase gelada! A visão que me ficou gravada na memória, foi ver muitos militares PAs, em tronco nu, bastante queimados do sol, de picareta e pá na mão a abrir valas a poucos metros da vedação da BA9!
Permaneci na Base mais de uma semana, sem nada para fazer, comia bem pois a ementa era boa, mas dormia mal, pois o calor era intolerável. Andava bastante inquieto, porque não sabia o que fazia ali, e não me diziam nada.
Até ao dia em que os altifalantes anunciaram, para formar. Foi então que eu e os camaradas que viajaram comigo, soubemos, que tínhamos estado á espera, dos “meninos” que tinham fugido e que afinal de nada lhes valeu! Nesse mesmo dia um NordAtlas levou-nos para a AB4 em Henrique de Carvalho! 
Ainda o dia não tinha chegado ao fim, e já o meu conterrâneo Sargento Carloto tinha alterado o meu estado de espírito, de sóbrio, para meio embriagado! 


Gostei da Base, gostei do reencontro com camaradas de curso,  gostei dos militares que já lá estavam em comissão, foi tirada uma foto para mais tarde recordar! Enfim gostei da Base! A Base era calma, tudo decorria com normalidade. Só haviam um problema. Um grande problema! Era o Refeitório e a alimentação! 
Os refeitórios, o dos Praças e PA à esquerda, os outros eram dos Especialistas, Oficiais e Sargentos
O refeitório era um barraco feito de tábuas mal colocadas onde o pó, o frio e a chuva entravam por todos os lados, o chão escorregava de tanta gordura! 
Enquanto uns comiam, outros esperavam a sua vez ao sol, ou á chuva, e enquanto esperávamos iam passando por nós ovos estrelados em cima de tampas de bidons, que por sua vez eram transportados em carros de mão, e á medida que iam avançando levantavam uma nuvem de pó, que se depositava em cima dos alimentos, enfim, éramos tratados como porcos !

E o mais grave era que passávamos por um refeitório novinho, acabado de construir, apetrechado de toda a maquinaria moderna (para a época) e que nunca tinha servido, nem se sabia quando iríamos comer dentro dele! 
Cap.Várzea (camisa escura)
no Natal de 1974
O nosso Capitão, António Várzea, era um Oficial Paraquedista competentíssimo, um ser humano extraordinário, compreensivo, solidário, e acima de tudo um grande amigo! Era o nosso segundo Pai! Podia-mos contar com ele para tudo! Todos os dias antes do pequeno almoço ele nos dava conselhos. Perguntava como estavam as coisas, quais os problemas com que nos deparávamos, enfim, ali eram expostos todos os problemas, incluindo novas táticas de combate e apresentação de algumas armas novas! Seguia-se a ginástica, banho e pequeno almoço. Esta “seca“ era diária, mas só para quem não estava de serviço! 

As Messes...sempre o velho problema! (Gamanço) 
Não é uma situação nova no historial da Base, nem de outras unidades, o "orientanço" nas messes. 
A messe era um problema abordado quase todos os dias! 
As queixas sobre a quantidade e a qualidade da comida, era transversal a todos! E nós estávamos a ficar fartos de olhar para dentro do refeitório novo e vê-lo todo apetrechado, e irmos comer uma “Travìa" á Barraca
Os novos refeitórios ao fundo


Creio que foi no mês de Junho, ou Julho de 74, que foi resolvido o problema da barraca e o refeitório novo, teve que abrir! Todos pensávamos que agora no refeitório novo íamos comer bem, pois condições já tínhamos! E de facto ao principio assim foi. Era notória a melhoria da ementa! Talvez porque o refeitório era muito visitado e exibido a várias entidades! Mas, depressa passou a boa onda, e voltámos a comer pouco e mal confecionado! Já não havia razão para se comer mal! 
O tema foi abordado muito seriamente numa das “secas“ do Capitão Várzea! E foi decidido enviar um Cabo da PA fazer de espião para descobrir o que afinal se passava…?! 
O problema que se punha, era, que voluntários para enfrentar dois Sargentos e um Tenente, era candidatar-se a levar uma porrada! Como ninguém se voluntariou, o Capitão resolveu tirar á sorte com uns fósforos, e quem tirasse o fósforo partido ia para a Messe, tentar resolver o problema! E agora adivinhem a quem calhou o fósforo partido? A mim evidentemente! 
Fui! Sem medo! Se me dessem uma porrada, porreiro! Se não dessem óptimo! Não tinha nada a perder! Eu  ia decidido a descobrir o que se passava! 
A ementa não era variada, e era pobrezinha. Num dia típico, serviam-se duas, ou três batatinhas cozidas, com um rabinho de peixe, que tinha mais espinhas do que carne; outras vezes havia um pouquito de arroz, e um bocadinho de frango ” deficiente”, pois não tinham peitos, nem pernas, pão para acompanhar e, de sobremesa uma rodela de abacaxi da agropecuária, ou ás vezes laranja. Este novo refeitório era composto por uma grande câmara frigorifica, um escritório, um WC, uma grande cozinha, bem apetrechada, uma copa com todas as máquinas necessárias, um salão enormíssimo, que funcionava em regime de self-service. Havia uma divisão que separava os Cabos Especialistas e os Sargentos do resto do pessoal, entrávamos e saíamos todos pela mesma porta, comíamos todos do mesmo comer e convivíamos todos muito bem! Ao fundo, quando os tabuleiros já estavam servidos, havia uma mesa e um apontador de quem já tinha comido, para controlar as refeições e que apontava o número, ou o nome da pessoa que passava com o tabuleiro! Havia em frente á cozinha uma porta que dava acesso direto para a messe dos oficiais! 
Estávamos numa Base onde os abastecimentos não faltavam, sabia-se que havia uma verba predestinada por pessoa para alimentar as tropas...então por que raio para além de fraca qualidade, a comida na messe dos Praças e Sargentos continuava a escassear? 
Para descobrir isso, lá estava eu, o 1º. Cabo PA Silva, era uma tarefa complicada! Mas eu tinha tempo! 
Quando me apresentei ao Tenente que geria as messes, apenas o Capitão Várzea e alguns outros cabos da PA conheciam a minha verdadeira missão: descobrir se havia marosca na cozinha! 
O Tenente e os dois Sargentos, que geriam a cozinha e as messes não viram com bons olhos aquela intrusão e ao início criou-se um ambiente algo tenso. Passada uma semana sem nada que fazer, fiz-me chateado e interpelei o Tenente, para que me desse uma tarefa. O Tenente perguntou-me se sabia ler (?), ao que desconfiado, respondi que não sabia ler muito bem mas dava para me desenrascar!. O Tenente deu-me então o que fazer: copiar as ementas, que eram rotativas, só levavam novas datas, sendo que nessas ementas constava a quantidade de alimentos que supostamente eram gastos por dia: - xis quilos de cebola, xis litros de azeite, xis quilos de carne, etc. etc. 
Passado algum tempo, já mais integrado, continuei a passar as ementas e recebi nova tarefa: passar os géneros alimentares da câmara frigorífica ao cozinheiro, um civil de Amarante. Ora foi precisamente esta combinação de tarefas que me permitiu perceber que havia mesmo marosca: o cozinheiro pedia determinada quantidade de alimentos mas as ementas davam a ideia de que se gastava o dobro! A diferença mantinha-se na câmara frigorífica e a questão era: para onde iria? Analisei, e reparei que o cozinheiro pedia sempre só metade da ementa que lhe era entregue. 
Já sabendo o que se passava, só me faltava saber quem se andava a “encher” com a nossa comida. 
Duvidei do cozinheiro, e do Zé um outro civil que trabalhava na copa. Então a partir daí, quando regressavam á Cidade passaram a ser revistados na Porta de Armas e nunca se encontrou nada! Portanto restavam três pessoas! O tenente que era esperto, percebeu que o cerco estava a apertar, e sem mais nem menos, entregou-me as chaves das câmaras frigorificas! Eu, pensei, (já te denuncias-te)! Queres-me entalar porque eu tenho as chaves que dão acesso aos alimentos! Fui ver o que havia dentro das câmaras e fiquei abismado com tanto porco, presuntos, queijos, azeite, enfim, havia ali muito de tudo e bom! 
Durante muito tempo, todos os momentos livres que tinha, ou que propositadamente arranjava forma para ter, fechava-me no WC, que tinha uma janela virada para o escritório, para as portas das câmaras frigorificas, e para o cais de cargas e descargas! Passei muitas horas fechado naquela casa de banho, mas, compensou! 
Um dia, depois de servido o almoço, os faxinas andavam a fazer a limpeza e eu fui para o esconderijo! Chega o Tenente no seu Ford Anglia cinzento, e estaciona junto ás portas das câmaras frigorificas, sai do seu carrinho, puxa de um monte de chaves e dirige-se para a porta da câmara frigorifica. O meu coração desatou a acelerar que nem um tractor, palpitava acelerado, e eu só pensava…é agora, é agora que te apanho, meu grande gatuno! O Tenente entra, passado pouco tempo sai com metade de um porco, volta a entrar e sai com vários lombos de porco, presuntos, e continuou, foi carne, foi queijos, foi azeite, encheu o porta bagagens do carro de tudo o que quis e lhe apeteceu! Trancou o carro, sempre olhando para todo o lado! Eu baixei-me e aliviado pensei: Já cá cantas! Esperei que ele saísse dali, o que não demorou muito. Ele foi até á cozinha, olhando para as panelas, onde o cozinheiro estava fazendo o jantar pois ele saía da Base ás cinco horas e tinha que deixar o jantar feito. Açorda, “as nossas migas de pão no Alentejo”: era o jantar com joaquinzinhos fritos! Fritos de manhã e colocados no frio ,para serem comidos ao jantar! Ficavam mesmo óptimos junto com a açorda toda espapaçada! 
Era altura de agir! Peguei na “kinga“ (bicicleta), dirigi-me ao Capitão Várzea, de seguida à Porta de Armas e pedi dois PAs ao Cabo da Guarda que era o Spinola. Os elementos da PA, puseram-se a vigiar o veículo discretamente. A ordem era: não deixar sair aquele carro, nada mais! E o Capitão Várzea deu-me ordem para que "armasse a barraca" e deixasse o resto por sua conta. Armar barraca?! Mas como?! O que fazer? Como o jantar não tinha jeito nenhum, e ninguém comeu bem e muitos reclamaram. O clima estava propicio para armar barraca…Os faxinas reclamando, preparavam-se para jantar e eu pensava… Então perguntei-lhes: vocês querem comer isto, ou comer um bom bife grelhado? Olharam uns para os outros e perguntaram: e onde estão os bifes? No Frigorifico! Respondi eu! Então e o Tenente ? Isso é assunto meu OK?!                                 E assim se deu inicio á "barraca"! Peguei nas chaves que o Tenente me tinha dado (com segunda intenção) fui á câmara e cortei oito grandes bifes de lombo de porco. Ligo a placa grelhadora que era enorme, e eles todos á minha volta meio receosos, meio contentes! O cheirinho delicioso, daqueles bifes suculentos depressa começou a dirigir-se para a Messe dos Oficiais, pois a porta ficava mesmo em frente. Este aroma delicioso depressa trouxe o Oficial de Dia, que era o Alferes Pimenta. Que pergunta: então por aqui comesse bem, não há um bifinho para mim? Eu respondi: vai já sair ! E fui buscar mais um bife! Eles á espera e eu grelhando e servindo os bifes! Claro, que se o aroma trouxe o Oficial de Dia também veio atrás o nosso Tenente! O homem entra, inspira fundo, como que a certificar-se se era verdade o que estava a ver e grita: para quem são esses brutos bifes? Ao que eu calmamente respondo: para quem os quiser comer! Também quer um? Vou dar-te uma porrada! Grita ele. E eu respondo faça favor, 1º. Cabo PA 214/73 Silva. E continuei a grelhar! Então o homem passou-se, desatou numa berraria, ao mesmo tempo que esgatanhava a cabeça a coçar-se e gritava: Pimenta prende este Cabo, senão prendo-o eu, gritava possuído! Eu saltei por cima do balcão, onde se colocavam os pratos já servidos, dirigi-me ao Tenente e olhos nos olhos, perguntei-lhe? Tem coragem para me prender, seu gatuno?
Foi o descalabro total! 

O confronto que se seguiu atraiu o Capitão Várzea que fingiu de nada saber, o Sr.  Major 2º. Comandante da Base, pediu satisfações sobre o desacato e também sobre o churrasco. Eu delicadamente e seguindo todas as normas de disciplina contei o que se passava e pedi ao Sr. Major para mandar abrir o porta bagagens do Ford Anglia, para horror do Tenente, que começou por dizer que não tinha sido nada importante e que me perdoava, tentando assim ver se desviava a atenção do carro e do que lá continha no porta bagagens...tudo roubado
Resultado: para horror crescente do Tenente, após a denúncia do que se passava, houve uma procissão de gente graduada que se dirigiu ao seu carro - que estava vigiado por dois elementos da PA - e, perante os protestos do gatuno, o Major mandou abrir o porta-bagagens. No interior, qual gruta de Ali Babá, estavam preciosos tesouros ultramarinos, alimentos em quantidade e qualidade, mas subtraídos à alimentação do pessoal da Base! 
O "31" eu e a "Raquel"
Desconhece-se o desfecho da história para o Tenente,  sabe-se apenas que terá sido chamado ao Comando, nunca mais foi visto e - o mais importante - dali em diante passou a comer-se à "grande e à francesa" no AB4! 

Felizmente, nem todos os prevaricadores escaparam impunes...mas graças à PA, que como polícias que eram, entre outras missões tinham também entre os seus deveres...apanhar ladrões, este foi! 
Para finalizar, o número do Tenente - 31 - foi dado como nome a um cão filho do nosso "camarada" de quatro patas, de nome "Chapaça"  !


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3 comentários:

  1. foda.se ,que historia incrivel,devias postar as tuas aventuras no facebook

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  2. Gostei desta narrativa. Assim se "despacham" os corruptos e vigaristas deste nosso belo País. Parabéns pela coragem e que sirva de exemplo para os "fora da lei". Ex. especialista da FAP.

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