Chegámos, eu e os meus companheiros, a um acampamento de Bosquímanos. Alguns abrigos feitos de paus, folhas e ervas, muito rústicos, para se abrigarem do sol escaldante durante o dia e do frio da noite, e como sempre, muitas crianças, de barrigas enormes, e algumas mulheres jovens e adultas, idosas não havia.
Os homens andavam esgravatando a terra seca à procura de raízes comestíveis, de frutos selvagens, colhendo mel ou caçando animais de pequeno porte, que constituem as suas magras refeições e que ocupa a maior parte do dia de um bosquímano, o grande problema é encontrar água. Basta dizer, onde este povo consegue sobreviver, nas terras estéreis do Cuando Cubango, nenhuma outra raça consegue sobreviver. Apesar desta fraca alimentação são robustos e as mulheres, belas e muito sorridentes.
Felizmente que tínhamos um guia, de uma outra etnia, que nos levou ao local pois os seus abrigos confundem-se com a mata e é difícil encontrar um acampamento.
Muitos quilómetros antes já eles sabiam que estranhos vinham na direcção das suas cubatas e então escondiam-se no meio da vegetação num silêncio total.
Depois de algumas palavras do guia no seu dialecto, muito curioso de estalidos com a boca, lá apareciam, como zombies, muito medrosos e cheios de receios. Depois de uma oferta de cigarros, sal ou açúcar, era uma felicidade para este povo que tanto sofreu durante décadas.
À noite, à volta da fogueira, era uma alegria. Cantos e danças ritmadas com o bater das mãos. Temos registados estes momentos em gravações e em filmes de 16 mm.
Quando desci o rio Cubango em 1972 encontrei outros povoados organizados pelo Governo Geral, que pretendia, com enorme esforço, formar uma nação Khum e assim evitar o domínio de outras etnias sobre este povo tão sacrificado. A revolução de Abril deitou por terra toda esta nobre tarefa.
Por onde param agora? Uns fugiram para o Namibe ou para o Botsuana, outros andam escondidos nas matas das Terras do Fim do Mundo. Continuam a sofrer, ninguém e nenhuma Nação os protege. Este povo, pacato, que foi o primeiro a povoar a África Austral, foi corrido das suas terras por outros povos guerreiros, vindos do Norte, que os reduziu em escravatura, e ninguém se preocupa com isso.
O RENASCER DOS KHUM
É uma história triste e muito incompleta a que trago, do Cuando-Cubango, para contar. Uma história larga de centenas de anos com capítulos esparsos pelas pinturas animistas das grutas do welt, reinventada em cânticos de cantar à volta da fogueira, guardada na memória não ordenada dos mais velhos, nas cicatrizes de queimaduras que lhes desenham o peito e costas, nos ventres espantosamente esféricos, desproporcionados.
Aviso que este conhecimento representa, também, uma obrigação: a de tentar fazer alguma coisa por este povo, nobre e escravo, que se extingue, brandamente, silenciosamente, humildemente, quase desculpando-se por ainda existir.
O som de metal contra metal, vibrante em três notas claras, acorda o TUXU, a aldeia. Das toscas cabanas, que parece serem apenas tecto, ergue-se em resposta um coro largo de tosses brônquicas. Faz frio, sempre, pela noite e manhã adentro, no Cuando-Cubango. Um frio seco e mordente, que chega depressa aos ossos. Pelas portas ovais das cubatas, uma estrutura simples de troncos em abóbada, coberta a capim, surgem vultos de crianças.
Do colmo, filtra-se o fumo das pequenas fogueiras, acesas no escuro interior, para a primeira refeição do dia.
A aldeia anima-se, enquanto o sol sobe, discretamente, para lá tão longe que nem aquece. Vultos friorentos, de mulheres e homens, aparecem a ver a manhã que nasce sobre o único grande acampamento KHUM, a Vila Administrador Pereira Pontes, existente em toda a Angola. Será, mesmo, por um conjunto de circunstâncias, local único em toda a África.
Ganguelas e Kiokos chamam-lhes, depreciativamente WASEKELLE, os etnólogos e outros entendidos BOCHIMANES ou BOSQUIMANOS. Parece que poucos curaram de saber como eles próprios se chamam uns aos outros – um nome sonoro, firme e orgulhoso: os KHUM.
Enquanto Alberto, o chefe das milícias, grita para a formatura, desautorizando os dorminhocos, Gonçalo Mesquita, um homem grande e loiro, de olhos frios, com uma história que passa pela Legião Estrangeira e pela O.A.S., fala, com estranho amor, desta gente. Ao princípio, em Outubro de 1969, eram apenas 37, agora, ascendem a mais de 700 almas e seriam duas mil se, para tanto, lhes dessem condições mínimas que fossem.
Nesta aldeia se desperta um povo para a vida de hoje.
Se lhe insufla a dignidade perdida, ao longo de dezenas de anos de escravidão feroz. Se lhe dá uma condição humana. Pode estar aqui, o embrionário, o ressurgir da "nação" KHUM, que terá hoje à volta de 10 mil membros (não recenseados) dispersos pelas chanas do Cuando-Cubango, pelas faldas da serra da Chela, pelos caminhos quentes e quase secretos do Namibe.
Gonçalo Mesquita fala do pouco que tem, do muito que precisa, da falta de apoio oficial para a iniciativa.
Mostra o que está feito – tão pouco ainda – desbobina conclusões e recomendações, a terminarem, sempre, com a mesma frase: "Este povo merece que se faça alguma coisa por ele"...
Um açude represa, numa lagoa, a água necessária às culturas, que vicejam na terra fértil: é o feijão e o milho, é a alface e a "tronchuda", em grandes e cuidadas hortas.
Parece pouco importante, para quem não saiba o que se passa no Cuando-Cubango onde, num ano, o Estado despendeu qualquer coisa como 12 mil contos, na alimentação de populações recuperadas. Para quem não saiba que todos os frescos consumidos em Serpa Pinto vêm de Sá da Bandeira, de comboio.
Os KHUM, neste aspecto, encontram-se quase auto-suficientes. Sobre sacos de sisal, no meio da aldeia, seca-se a última colheita de feijão encarnado.
Mulheres pilam, à maneira ancestral, quantidades de milho. Ainda assim, a vida não é fácil. Faltam o vestuário, os cobertores, os medicamentos, apesar do auxílio das Forças Armadas, dos comerciantes e particulares de Serpa Pinto, também tocados pela obra grande que se realiza. E era ponto assente que os KHUM não serviam para nada, nada sabiam fazer, salvo caçar quando a fome lhes apertava os estômagos vazios, salvo colher frutos e raízes na floresta…
Afirmam-nos pioneiros e exploradores, nas suas crónicas de viagem, onde os descrevem como seres repelentes, piores do que animais, desconhecedores da agricultura, da criação de gado, ignorantes do trabalho do cobre e do ferro. Viajantes que já encontraram os KHUM submetidos pelos Bantos, após uma guerra de extermínio, puro genocídio para varrer este povo da face da Terra. Quase o conseguiram.
Os conhecimentos ancestrais não se perderam. Hibernaram apenas, através das gerações escravizadas e ressurgem, agora, em toda a sua pujança.
Nas lavras, juntas de bois puxam o arado. Um bochimane senta-se ao volante do único tractor, emprestado, que serve à aldeia para os trabalhos mais duros. Fá-lo com evidente à vontade, como se nunca tivesse feito outra coisa, ele que há bem poucos meses era menos do que um pária, tutelado a um "senhor" Kioko ou Ganguela.
No entanto, os KHUM eram os verdadeiros senhores da terra, antes das grandes invasões dos povos Bantos, vindos do Norte, antes dos Holandeses do Cabo, para fugirem à dominação inglesa (1838) terem ultrapassado a barreira das montanhas do Drakenberg, rumo ao interior.
Na tosca enfermaria, onde falta o essencial, a esposa de Gonçalo Mesquita faz o que pode pelos doentes, quase sempre velhos, esqueléticos, de braços e pernas tão finos que parece possível parti-los, com as mãos, sem esforço. O maior problema ainda é, porém, a fome crónica que quase todos os habitantes de Vila Administrador Pereira Pontes trazem bem marcada no corpo acobreado.
DA GLÓRIA À DERROTA
A história da Nação KHUM anterior à guerra em duas frentes, que terminou com a derrota e a dispersão das tribos, é quase desconhecida. Os primeiros testemunhos sobre este povo chegam-nos através dos Holandeses do Cabo, que lhes invadiram os domínios e os dizimaram.
Já por esse tempo estavam em luta aberta com as tribos Bantos – sobretudo de Ganguelas e Kiokos – que desciam do Norte, em vagas imparáveis.
Os KHUM "não pediam quartel e nenhum quartel lhes davam". Lutavam até à morte, mesmo depois de feridos, o pequeno arco semicircular despedindo flechas ervadas com veneno mortal e doloroso, a ponto de forçar os atingidos a esburacarem a ferida, com a lâmina da faca, até cortarem tendões e vasos sanguíneos. Muitos tinham espingardas, compradas aos pumbeiros, em troca do marfim, da liamba, do cobre.
Esta situação desesperada atingiu o seu auge e declinou rápidamente para a resolução fatal entre os anos de 1800 e 1860. Já no princípio deste período o extenso domínio dos Bochimanes se tinha reduzido à região ao longo do Rio Grande, às nascentes meridionais e centrais, no que viria a ser o Estado Livre de Orange. Contudo, até neste momento da sua maior miséria e isolamento eles pareciam manter intacta uma certa dignidade, abandonada por outras raças.
O crepúsculo da Nação KHUM é contada por eles em admiráveis pinturas rupestres, descobertas e estudadas pelos etnólogos sul-africanos até à exaustão. Por nossa parte, as que se encontram no deserto do Namibe, muito mais recentes, nada se conhece, donde talvez seja possível concluir que os KHUM de Angola já provêm do êxodo das tribos originais agora dispersa pelo Sul da Província.
Ainda hoje é possível reconstituir-se - se para tanto se
agir depressa – parte da cultura deste povo.
Fê-lo Pereira Pontes admirável figura de velho funcionário administrativo, toda uma vida sacrificada ao Quadro, compêndio vivo de usos e costumes das tribos desta zona, uma experiência dos "velhos bons tempos" difícil de encontrar...
Fê-lo Pereira Pontes admirável figura de velho funcionário administrativo, toda uma vida sacrificada ao Quadro, compêndio vivo de usos e costumes das tribos desta zona, uma experiência dos "velhos bons tempos" difícil de encontrar...
Porém, não é um etnólogo. Fê-lo, com maiores conhecimentos, o venerável Padre Carlos Esterman, mas muito campo virgem resta, ainda, por desvendar.
A vida para os KHUM era bem diferente da desta aldeia, organizada, por imperativos evidentes, como um 48 grande quartel.
A ordem – social era a Monarquia. Un rei, o Ku-vê, um vice-rei, o Kai-Há, um ministro (?) Nê-Kau.
Havia os Donzi, chefes de guerra, os Maku-Mã, seus subalternos, os Nahim-Kau, os guerreiros. Cultivavam lavras, San-guê nos tempos da chuva Xinam-já, no tempo seco à margem dos rios. Trabalhavam o ferro Ká e o cobre Kanu. As mulheres, e só elas, moldavam o barro, que os homens, se o fizessem, perdiam a virilidade.
Os velhos, hoje, repelem com notável veemência o vocábulo Kau – a tribo, substituindo-o por KHUM, – a raça, agora que já são poucos. Ainda assim, recordam os nomes de, pelo menos, doze grandes tribos, vivendo em povoações fixas, Tu-xu, de casas feitas de pau, as paredes cobertas de cascas de árvores grossas, telhadas a capim.
Chamavam T'xu-num a essas cabanas, bem diferentes das de hoje, que parecem esfiadas cabeleiras de Beatle erguidas sobre a terra arenosa.
E tinham armazéns de víveres Un-con-si. Só a existência deste vocábulo na lingua KHUM, que se entremeia de estalidos, seria prova suficiente para desfazer o mito do nomadismo. O Administrador Pereira Pontes ainda encontrou vestígios de lavras de tempo seco, feitas pelos Bochimanes, à margem dos rios, montículos de terra, de 40 centímetros de altura, para evitar o excesso de humidade.
Em 1880, os KHUM do Cuando-Cubango ainda se dividiam em tribos, gozavam de estabilidade política e social, possuíam espingardas, cabras e os seus filhos eram "crianças encantadoras e fortes", como o são, algumas, hoje.
A ocupação portuguesa do Cuando-Cubango iniciou-se em 1909-1910.
Já este povo se encontrava completamente escravizado, pelas tribos Bantos, que "sempre os guerrearam com ódio feroz (...) devorando-os e fazendo outros escravos, nas proximidades das suas povoações".
Para vencerem estes restos dispersos do que fora a maior nação pré-banta da África Austral, ainda assim usaram do traiçoeiro estratagema de envenenarem, durante um banquete, os seus chefes de guerra. Foram os Ganguelas, auxiliados pelos pumbeiros Kiokos que para ali iam, traficar borracha, que se encarregaram da tarefa e da horrível matança que se lhe seguiu.
Começara o tempo da escravidão. Sem chefes, os KHUM foram rapidamente subjugados e feitos escravos. Por uma espécie de justiça imanente, os Kiokos despojaram, depois, os Ganguelas das terras conquistadas aos Bochimanes...
A ESCRAVIDÃO
Trinta e três anos depois de Bernardino José Brochado por ali passar, apenas quatro anos depois dos testemunhos do Padre Carlos Duparquet, os exploradores Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto referem-se a "fragmentos de população, evidentemente distanciados pelo aspecto, língua e costumes das tribos de raça negra, no meio dos quais vagueavam."
"Estamos em presença duma raça indolente, d'um typo infimo da humanidade, que nenhuma esperança ou desejo despertam para as lutas da vida". " Não praticam nem conhecem a agricultura. Não conhecem o ferro nem o bronze. Não têm previdência. A pátria, para eles, é o chão onde acendem hoje o fogo, é a caverna ou a fenda das rochas onde se abrigam, de noite, com a mísera prole".
Capelo e Ivens dizem: "Nada há de mais abjecto e repugnante do que esse arremedo de homem, que hoje vagabundeia pelos bosques e campinas(...) tão revoltante é esta raridade do humano género, tão mesquinho o seu ar, apoucado o vulto e estranho o modo, que degrada e aflige ter que descrevê-lo. É como se em frente de nós se erguera um cadáver e, parando, nos fitasse, envolto em miséria e frio..."
Que diferença vai desta descrição, à do Padre Duparquet: "DONGA: nas costas desta, 20 a 25 léguas, há um mato habitado por Mucuancalas (Bochimanes) que diferentes da raça têm residência fixa, sendo donos de grandes minas de cobre, que é sabido existirem naquelas partes".
Só esta gente do Donga comerciava com os KHUM.
Os outros, segundo o narrador, eram mortos imediatamente.
Brochado, nas suas crónicas de viagem, afirma que os KHUM têm residência fixa e impedem o trânsito, pela via mais rápida, entre o Cuanhama e o Mucusso, obrigando a uma volta por Cafima.
O que se passou, entre os relatos de uns e outros; terá sido uma guerra de puro genocídio. Os Bochimanes sobreviventes foram distribuídos pelas tribos Bantos vitoriosas e feitos escravos – o tráfego de escravos fora abolido em 1815 e a escravatura em 1836 – e concentrados em acampamentos.
O Administrador Pereira Pontes, numa curiosa monografia sobre os Wasekelle, descreve um desses acampamentos, que visitou em1938:
"Ao fim de dois dias de viagem, montado num burro, cheguei à povoação do queixoso e, meia hora depois, acompanhado da autoridade tradicional dessa povoação e doutros Bantos, encontrava-me, muito surpreendido, entre os Bochimanes. Nada revelava que o local fosse habitado por seres humanos.
A população desse acampamento era de cerca de 50 pessoas, de ambos os sexos, e de todas as idades. Havia mais crianças do que adultos e mais mulheres do que homens. Todos andavam totalmente nus, apenas usavam uma minúscula pele a tapar-lhes o sexo. Essa pele, como depois me disseram, era de coelho, tida como a mais ordinária, que nenhum homem ou mulher livre usaria, por vergonha, só os escravos a usavam. Só as mulheres dos Bochimanes eram autorizadas a confeccionar, com peles de pequenos antílopes, uma espécie de alforge, para carregarem os filhos às costas.
"Na mata onde se situava o acampamento dos Bochimanes, as árvores eram esparsas umas das outras, o que a tornava clara e, de permeio, cresciam pequenos arbustos, de cerca de dois metros de altura. Vim a saber, depois, que não era permitido aos Bochimanes o corte de qualquer árvore ou arbusto.
"Nem o acampamento, nem as pessoas que nele viviam, podiam ser vistos ao longe. Por baixo da copa dos arbustos viam-se pequenas concavidades, parecidas com as que os animais abrem com o dorso quando se espolinham, que me disseram serem abertas, à mão, pelos Bochimanes, para, à noite, lhes servirem de cama, espalhando em cima dessas concavidades folhas tenras, para não magoarem os seus corpos nus nos grãos de areia. Por cima das copas dos arbustos, todos eles sem folhas, (…) viam-se pedaços de capim, cuja utilidade se não percebia.
"Os acampamentos eram fixos e só eram mudados com os Bantos quando mudavam as suas povoações para outro local. Os Bochimanes estavam, a todo o momento, ao serviço dos Bantos, a quem pertenciam. Não se podiam ausentar em momento algum, nem mesmo para procurarem alimentos.
"Como compensação, recebiam os farelos das farinhas peneiradas pelas mulheres dos Bantos a que pertenciam, com uns pequenos atados de folhas de cânhamo (liamba)".
Os Bochimanes eram marcados com os sinais característicos de cada tribo Banto a que pertenciam: Os Kiokos obrigavam-nos a limar os dentes em vvv, os Ganguelas em arco, os Vakangalas em arco também, mas com as pontas exteriores afiadas.
Marcados como se marca gado. E como gado, aliás, eram tratados.
O velho funcionário administrativo prossegue a espantosa descrição: "Nada, absolutamente nada, se via naquele acampamento que, aos olhos dos leigos, pudesse revelar coacção. A disciplina era discreta e eficientíssima. A sujeição era absoluta".
Assim se reduziu um povo à condição de animal, e animais eram para os seus senhores, que nem lhes chamam "homem" e "mulher" mas sim "macho" e "fêmea".
A liamba, prodigamente distribuída, retirava-lhes o raciocínio. Mesmo as crianças de peito, trocavam a teta da mãe pela boquilha da mutopa, o cachimbo em que se fuma este estupefaciente. Depois, o frio das noites do Cuando – Cubango, que desce a 8º C, um frio suportado, sem outro vestuário que a desonrosa pele de coelho, um frio torturante e maligno que justifica, hoje, as cicatrizes de queimaduras ostentadas pelos mais velhos, no peito e nas costas. Eles lançaram-se sobre os carvões das fogueiras, acesas ao lado das "concavidades" que lhes serviam de cama, para se aquecerem. Por isso a referência: "É como se diante de nós se erguera um cadáver e, parando nos fitasse, envolto em miséria e frio..."
A sujidade lhes servia de cobertor. Sobre as queimaduras "muitas infectadas, criando crostas por onde escorriam serosidades", amontoava-se o pó da terra e a cinza das fogueiras. De senhores da terra passaram a escravos.
Perderam-se as antigas designações tribais, enquanto os vencedores os chamavam pelo nome de bichos, como Vasekelle e Vakwankala. Nada tinham, nem o direito de erguer casas para viverem. Eram animais de compra e venda, completamente subjugados. E parecia, aos olhos dos leigos, não haver a mínima coação...
Só em 1952, o Administrador Pereira Pontes chama a atenção dos seus superiores para os Bochimanes, que"viviam num regime de tutela, imposto pelos Bantos, desde que estes ocuparam os seus domínios, tutela essa de que acha imperioso e urgente libertá-los"...
O FIM DA ESCRAVATURA BANTO
Também ao Cuando-Cubango chegaram os homens do "contracto", em busca de braços que trabalhassem o 55 café do Norte. Kiokos, Ganguelas e Lundas também se integravam nestas caravanas. Até perceberem que, para trás deixavam o escravo, que bem os podia substituir, com a vantagem de lhes receberem o dinheiro ganho, noutras terras, quando voltassem.
A medo, começaram a apresentar os KHUM aos contratadores, que os aceitaram. E eles foram e viram e aprenderam que havia outra vida possível, para além daquela
dos acampamentos. Aprenderam. E revoltaram-se. Há rumores de chacinas de KHUM, como "exemplo", mas nada se confirmou. Os segredos, no mato, raras vezes chegam a ouvidos estranhos.
O certo é que, grande parte deles, depois de virem dos contractos, desapareceram. Muitos foram viver para longe da tribo a que pertenciam – e passaram palavra. Este ciclo da história KHUM inicia-se em 1950. Pouco a pouco, reuniram-se em aldeias escondidas nas profundezas das chanas. Libertaram-se da tutela.
Uns e outros se viram, repentinamente, envolvidos na guerra de guerrilha que se desenrola, há anos, no Cuando-Cubango. Não havia lugar, para os KHUM, nas hostes da UNITA ou do MPLA, por isso mergulharam ainda mais fundo nas matas. Outros, seguiram os senhores Bantos na clandestinidade. Ainda outros procuraram a protecção das autoridades. Em breve com ela colaboravam, como pisteiros.
GUERRILHEIROS POR EXCELÊNCIA
A milícia está formada, com Alberto à frente, na parada da aldeia. Os homens parecem frágeis. As feições mongolóides, a pele cor de cobre, a gentileza da ossatura, recordam os vietnamitas, que tanto se lhes parecem.
Os mesmos olhos amendoados. Apenas o nariz amachucado os diferencia dos rostos enigmáticos que ressaltam das reportagens de guerra feitas na antiga Indochina. E também estes são guerrilheiros, dos melhores que pode haver, frugalíssimos, leais, com uma motivação forte para o combate, com um conhecimento profundo da terra e dos hábitos dos seus ex-donos.
Depressa o provaram. Foram treinados nas artes da guerra. Deram-lhes armas automáticas – a G3, a FN – e hoje estão espalhados por todos os aquartelamentos do Distrito, fidelíssimos, arrojados no combate. Todas as operações dos KHUM, iniciadas em 1967, tiveram resultados positivos. Armas capturadas, centenas de granadas, milhares de munições. Centenas de cabeças de gado foram, por eles retiradas da alçada do inimigo. Quanto a populações, só o ano passado devem ter trazido para o convívio português, entre cinco a seis mil pessoas. E trouxeram quilos de documentação, de "quartéis" da UNITA e do MPLA.
Conhecem a mata: A necessidade obrigou-os, nestes anos de escravatura, a aprenderem a subsistir com os recursos da mata. Apenas precisam de um bolso de sal para fazerem, a pé, em tempo incrível, percursos de 300 quilómetros.
Os KHUM não gostam de fazer a guerra acompanhados. Preferem ir sozinhos, depois de, mesmo ali na parada, terem devorado duas ou três rações de combate – "porque fazem muito peso". De compleição frágil, não suportam as mochilas, nem delas precisam. Apenas um cobertor, a arma, granadas, as munições. E um punhado de sal. Os chefes de grupo aprenderam a ler os mapas. O mais importante sucesso por eles alcançado, terá sido a morte (ainda não confirmada) do comandante-geral da UNITA numa operação de assalto a um acampamento da UNITA-SWAPO. Quinze KHUM abriram fogo, de surpresa, das próprias trincheiras do acampamento, armaram um "pé de vento" desgraçado, fizeram debandar os guerrilheiros – entre 40 a 50 – capturaram armas, munições, granadas, importante documentação.
No regresso um dos KHUM identificou, em fotografia, o chefe terrorista, que disse ter tombado com uma bala na cabeça e muitas no peito. Além disso trouxe toda a documentação pessoal daquele chefe terrorista, que não chegou aos 40 anos, especializado em guerrilha pela Academia Militar de Pequim. De caminho o grupo trouxe, também, uma bandeira da UNITA, hasteada no acampamento, novinha em folha, fabricada no Cairo.
Estas espantosas forças de contra-guerrilha actuam na mais estreita colaboração com as Forças Armadas.
Aldeamento dos Khum no Cuito Cuanavale em 1972 - foto de e com o Luis Timóteo |
O FUTURO
Arrancados ao jugo dos antigos senhores, transportados num repente do arco e da flecha para as armas automáticas, da colheita do mel e de frutos para uma produção agrícola planificada, da pele de coelho a tapar-lhes o sexo para a "mini saia" e a calça e camisa, os KHUM, parece, poderão olhar o futuro com maior confiança. E melhor será, ainda se as autoridades responsáveis – Governo de Distrito com o apoio do Governo Geral – lhes facilitarem um mínimo de condições.
O princípio está feito – a Aldeia Administrador Pereira Pontes. Há que prosseguir e isso só será possível com o auxilio do Estado, neste período de transição. Sequer será necessário muito dinheiro. O problema talvez se resolva mais com boa vontade do que com dinheiro. E convirá acentuar que não se podem contabilizar os gastos, em Angola, com as populações abrangidas pelas áreas do terrorismo.
O sonho grande – mas possível – de quem estruturou esta obra, sem nada ter, é a transformação da antiga colónia penal do Missombe, abandonada desde Setembro, num centro exclusivamente KHUM. Há ali muito trabalho feito, que se está a perder, nos campos circundantes, já preparados para a agricultura. Há oficinas casas, um edifício adaptável a "quartel". É tido como certo que viriam de todo o lado, para se acolherem à sua Pátria. e o que lhe oferecem, em contrapartida, não é para desdenhar.
Especialmente agora.
Texto de Moutinho Pereira em Angola Dever de Memória 1974
Fotos de Raul Sousa Machado, Jean Charles Pinheira e Zé Carcalho.
Sem comentários:
Enviar um comentário