Mueda - foto de Alfredo Silva Santos |
Um cão vadio, esquelético, vagueava na placa encostando o focinho ao chão na esperança de encontrar algum resto de nada.
Àquela hora da manhã, o silêncio era quase absoluto. Todavia, ouviam-se vozes vindas do lado do refeitório. Eram os nossos companheiros da cozinha que aprontavam o pequeno-almoço. Daí a nada, o sol começava a despontar e com ele apareciam à porta dos pseudo quartos/camaratas, espreitando o dia os primeiros madrugadores. Os mais sornas, continuavam na posição horizontal indiferentes aos impropérios dos circundantes.
Na placa, um T6 esfumaçava preparando-se para proteger o helicóptero que se dirigia algures ao mato ou picada para retirar mais uma vitima daquela guerra. Uma neblina envolvia o quadrado de arame farpado plantado na crista do planalto dos Macondes. Através daquela névoa molhante, vislumbravam-se as silhuetas dos aparelhos descansando merecidamente do esforço despendido na véspera. Uns metralhas colocavam bombas nos aviões, enquanto outros preparavam o caldo para a confecção do "ovo" que seria ofertado pelos Fiats... Os mecânicos dos "zingarelhos", entregavam-se a pequenas tarefas nos seus queridos meninos e, à falta de peças, sacrificava-se aquele que na circunstância servia de "vaca". Os dos "Teco-Tecos", operavam de igual modo, com o mesmo zelo e carinho. Ao lado ouviam-se os de rádio/comunicações fazendo o check-in na tentativa de ouvir um 5 por 5, tudo ok.
No intervalo de uma borradela de mãos, espreitava-se a porta do bar. Se, se encontrava aberta, numa escapadela, ia-se até lá para tirar a secura da garganta. O sol continuava em plena ascensão obrigando-nos a tirar a camisa e pôr os couratos a tostar.
Havia uma certa acalmia dando a sensação que a guerra andava por outras paragens.
Pura ilusão! Não raras vezes o camarada de serviço às comunicações, revelava o seu nervosismo quando as chamadas de socorro eram mais que muitas. Incitava-nos para que o "112 aéreo" fosse feito sem perda de tempo. Alguém estaria a sofrer, vítima das malditas minas ou de uma emboscada traiçoeira. Quase sempre vinha um ser humano que há pouco cheio de vida e agora transformado num monte de carne disforme.
À noite os amantes da "lerpa" satisfaziam as suas preferências. A maioria, mergulhava nas profundezas do líquido que exalava um cheiro doce e gosto tentador. Quando menos se esperava, por cima de nós passava um som agudo. Era a hora maconde e os obuses do PAD faziam tiro para a terra de ninguém.
Nas camaratas, escrevia-se os bate estradas para a família, ou para as-mais-que-tudo, com as promessas de um amor eterno e manifestações de carícias ardentes. Alguns, faziam levantar a roupa da cama em movimentos mais ou menos cadenciados, sonhando com imaginário feminino e outras fantasias. Que remédio...! O sono não tardaria a chegar.
Os que estavam de ronda, matavam o tempo à espera que a hora das rendições chegasse. Durante a noite a ronda metia respeito. Os menos afoitos tentavam convencer um outro camarada para o acompanhar. Nesse período, tinha-se por companhia o roncar penoso dos geradores da central. Os neons dos postes estavam envoltos por uma auréola circular e esvoaçando à sua volta centenas de insectos. As aves nocturnas, causavam arrepio com o seu piar prenúncio de agoiro. Aqui e além ouvia-se o rugido de uma fera e a adrenalina subia até ao último traço da escala. Para além do arame farpado, ficava por saber o que se estava a passar naquele momento. A descompressão só acontecia quando o corpo era vencido pela fadiga.
Termino com algumas palavras que alguém escreveu um dia: "lá longe onde o sol castiga mais, não há suspiros nem ais, há coragem e valor e à noite, com os olhos postos no céu, rogamos ao nosso Deus, que nos dê a salvação!"
Seria bom que os responsáveis deste país também tivessem coragem e valor para não deixarem ao abandono aqueles que se sacrificaram pela Pátria e que hoje têm uma mão cheia de nada.
Estes apontamentos vão direitinhos aos camaradas que me antecederam, aos que tive por companhia durante aqueles dois anos e aos camaradas do exército que tanto sofreram.
Àquela hora da manhã, o silêncio era quase absoluto. Todavia, ouviam-se vozes vindas do lado do refeitório. Eram os nossos companheiros da cozinha que aprontavam o pequeno-almoço. Daí a nada, o sol começava a despontar e com ele apareciam à porta dos pseudo quartos/camaratas, espreitando o dia os primeiros madrugadores. Os mais sornas, continuavam na posição horizontal indiferentes aos impropérios dos circundantes.
Na placa, um T6 esfumaçava preparando-se para proteger o helicóptero que se dirigia algures ao mato ou picada para retirar mais uma vitima daquela guerra. Uma neblina envolvia o quadrado de arame farpado plantado na crista do planalto dos Macondes. Através daquela névoa molhante, vislumbravam-se as silhuetas dos aparelhos descansando merecidamente do esforço despendido na véspera. Uns metralhas colocavam bombas nos aviões, enquanto outros preparavam o caldo para a confecção do "ovo" que seria ofertado pelos Fiats... Os mecânicos dos "zingarelhos", entregavam-se a pequenas tarefas nos seus queridos meninos e, à falta de peças, sacrificava-se aquele que na circunstância servia de "vaca". Os dos "Teco-Tecos", operavam de igual modo, com o mesmo zelo e carinho. Ao lado ouviam-se os de rádio/comunicações fazendo o check-in na tentativa de ouvir um 5 por 5, tudo ok.
No intervalo de uma borradela de mãos, espreitava-se a porta do bar. Se, se encontrava aberta, numa escapadela, ia-se até lá para tirar a secura da garganta. O sol continuava em plena ascensão obrigando-nos a tirar a camisa e pôr os couratos a tostar.
Havia uma certa acalmia dando a sensação que a guerra andava por outras paragens.
Pura ilusão! Não raras vezes o camarada de serviço às comunicações, revelava o seu nervosismo quando as chamadas de socorro eram mais que muitas. Incitava-nos para que o "112 aéreo" fosse feito sem perda de tempo. Alguém estaria a sofrer, vítima das malditas minas ou de uma emboscada traiçoeira. Quase sempre vinha um ser humano que há pouco cheio de vida e agora transformado num monte de carne disforme.
À noite os amantes da "lerpa" satisfaziam as suas preferências. A maioria, mergulhava nas profundezas do líquido que exalava um cheiro doce e gosto tentador. Quando menos se esperava, por cima de nós passava um som agudo. Era a hora maconde e os obuses do PAD faziam tiro para a terra de ninguém.
Nas camaratas, escrevia-se os bate estradas para a família, ou para as-mais-que-tudo, com as promessas de um amor eterno e manifestações de carícias ardentes. Alguns, faziam levantar a roupa da cama em movimentos mais ou menos cadenciados, sonhando com imaginário feminino e outras fantasias. Que remédio...! O sono não tardaria a chegar.
José Raimundo |
Termino com algumas palavras que alguém escreveu um dia: "lá longe onde o sol castiga mais, não há suspiros nem ais, há coragem e valor e à noite, com os olhos postos no céu, rogamos ao nosso Deus, que nos dê a salvação!"
Seria bom que os responsáveis deste país também tivessem coragem e valor para não deixarem ao abandono aqueles que se sacrificaram pela Pátria e que hoje têm uma mão cheia de nada.
Estes apontamentos vão direitinhos aos camaradas que me antecederam, aos que tive por companhia durante aqueles dois anos e aos camaradas do exército que tanto sofreram.
Senti-me de novo em Mueda ao ler estes escritos. Obrigado.
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