quinta-feira, 20 de maio de 2021

O POVO E OS SEUS FILHOS, SOLDADOS QUE FORAM PARA A GUERRA.


Aquele período entre 1961 e 1974, os anos da guerra, foi extremamente difícil para a esmagadora maioria dos portugueses.
Isolado do resto do mundo, Portugal era então um país económica e socialmente muito atrasado. A grande maioria da população ainda se dedicava à agricultura, praticada geralmente segundo processos tradicionais, alguns mesmo ancestrais, pouco rentáveis. Para além desta, a economia repartia-se quase exclusivamente entre o pequeno comércio e uma incipiente e pequena indústria baseada em mão de obra barata. O sector dos serviços, para além do funcionalismo público, estava apenas a despontar.
No ensino, a escolaridade era obrigatória apenas até à 3.a classe. Naquele tempo, ter a 4.a classe, era possuir um muito bom nível de escolariedade. No país grassava o analfabetismo e a maioria dos jovens apenas frequentava a escolariedade obrigatória.
A partir da 4.a classe, apenas aqueles jovens cujas famílias tinham algumas posses podiam continuar a estudar nos designados Liceus, dos quais, no entanto, com excepção de Lisboa e Porto, apenas havia um por distrito com frequência até ao 7 ° ano (hoje 12.° ano). Mas eram muito poucos os que usufruíam deste benefício, porque obrigava a despesas de deslocação e alojamento, incomportáveis para a maior parte das famílias. Assim, apenas um número muito limitado de jovens tinha o privilégio de atingir esse grau de ensino. E, claro está, um número ainda menor podia continuar os seus estudos, depois nas Universidades.
Portugal era, pois, um país cuja população vivia com enormes dificuldades, sobretudo a de menores recursos, o seu Povo.
Os salários eram de subsistência e as condições de trabalho muito más, sem leis que as regulassem eficazmente. No campo trabalhava-se de sol a sol; e no comércio e na indústria não havia praticamente limite ao tempo de trabalho, que não fosse o determinado pela entidade patronal. Descanso semanal, apenas ao Domingo, e as férias não eram pagas. Os serviços de saúde funcionavam de forma muito deficiente e apenas nos principais centros populacionais. Não havia creches para as crianças nem reformas ao fim de uma vida inteira de trabalho, excepto para os funcionários públicos. A Assistência Social, quando existente, era apenas feita por instituições de caridade, quase todas de natureza religiosa.
Grassava o desemprego, entrecortado por períodos de trabalho sazonal. Nas aldeias, ao longo de todo o dia, muitos homens estavam sentados nas tabernas ou encostados às paredes das casas, esperando que alguém lhes viesse oferecer trabalho por um ou vários dias.
As dificuldades económicas eram tantas que, em geral, pelo menos um dos membros da família emigrava para o estrangeiro, onde, apesar das grandes privações que passava, conseguia amealhar algum dinheiro que enviava para Portugal, para equilibrar o magro orçamento familiar. A emigração, apesar de contrariada pelo Estado, era então o sonho de quase todos os portugueses de menores recursos.
Os jovens cresciam assim num ambiente muito agreste, vivendo em casas sem condições de habitabilidade, sem energia eléctrica, água canalizada ou as mínimas condições de higiene. Na generalidade andavam mal vestidos e muitos não tinham sapatos ou botas, andando descalços ou apenas de tamancos. Mesmo no Inverno, era assim que arrostavam o frio por vezes gélido, característico da época.
Mas, como jovens que eram e apesar de tantas privações, não deixavam de se divertir como os de hoje, mas com recursos muito mais modestos do que as atuais play-stations, motorizadas, motos de água ou práticas das mais sofisticadas modalidades desportivas. Os rapazes jogavam ao pião, à bilharda, à laranjinha, brincavam com o arco, jogavam futebol com bolas de trapos. As raparigas brincavam ao jogo da semana e com bonecas de trapos, brinquedos que elas próprias manufacturavam.
Apesar de todas estas privações e dificuldades, não se pode dizer que aqueles jovens fossem menos felizes que os de hoje.
Uma coisa é certa: naqueles duros tempos, a juventude acabava cedo. Em geral, os dias despreocupados acabavam com o final da Escola Primária, aos 11, 12, 13 anos.
Com excepção dos privilegiados que continuavam a estudar, as necessidades das famílias obrigavam a que os jovens tivessem de começar a trabalhar de imediato, aprendendo uma profissão ao mesmo tempo que contribuíam para melhorar a débil economia familiar. Naquele tempo ainda não tinha sido definido o conceito de exploração do trabalho infantil...
Era, pois, a trabalhar duramente que aquela juventude ia crescendo, criando experiência de vida para então se transformarem, por fim, em Homens e Mulheres:
trabalhando, sofrendo, sonhando, ansiando sempre por um futuro melhor, se possível constituir até família, o que geralmente teria de passar pelo sacrifício da emigração, porque Portugal não oferecia condições de vida minimamente aceitáveis.
Além disso, para a juventude do Portugal de então, estava sempre presente e ameaçadora uma gigantesca barreira, um tremendo obstáculo à realização de todos os sonhos que são próprios da juventude que quer construir uma vida: a Guerra em África!
Era como que um tampão que cortava o futuro e se tornava cada vez mais ameaçador com o aproximar da prestação do serviço militar.
Era assim ser-se jovem em Portugal pelos anos sessenta e setenta do século passado.
Era assim a vida dos jovens portugueses, especialmente os do interior do País, no tempo da guerra em África.
Era assim também que decorria a juventude daqueles rapazes que, por volta dos seus vinte anos, iam combater para Angola, Moçambique e Guiné, para receberem em troca um quase nada. E que, em tantos casos, lá perderam a vida!
E ainda hoje, em 2010, existe um desconhecimento geral e uma grande incompreensão diante do seu sacrifício.
A infância e a juventude do Manuel Peixoto, do José Lourenço e do António Vitoriano, paraquedistas mortos em Guidage, em 1973, não poderiam ter sido muito diferentes daquilo que acabo de descrever.
Eles e as suas famílias eram uma amostra dos jovens e das famílias do Portugal de então.
Esta era a vida dos nossos soldados e das suas famílias.

Por Cor. José de Moura Calheiros, no livro Última Missão.


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