A minha
especialidade era Mecânico de Rádio. Nesse tempo (creio que no ano de 1968)
os mecânicos de rádio estavam subordinados a uma escala de serviço para prestar
serviços na Unidade - aliás, o que acontecia em todas as outras especialidades - e num desses famigerados
serviços que me calhara em sorte, era um mais ou menos assim chamado :
Mecânico de Rádio à Linha da Frente.
Linha da frente |
Dentre as várias tarefas que tinha que desempenhar, a mais rotineira e
importante, era efectuar logo de manhã, por volta das 7,30 horas, um teste de
rádio com a Torre de Controlo, de todos os aviões que estavam no táxi-way já
aprontados para partirem, que só esperavam a chegada dos pilotos
vindos da cidade de Henrique de Carvalho onde quase todos residiam.
Naquela
fatídica manhã de um dia cinzento e chuvoso, fazia um frio de rachar, e
lembro-me de estar todo enrolado num casaco de cabedal com gola de pele de
coelho que nos tinha sido distribuído, mas mesmo assim tinha as mãos
enregeladas e pecas. - Alô Carvalho, - alô Carvalho ... gritava eu com todas as
forças de dentro da cabina do T6, aflito porque já estava em cima da hora da
chegada dos pilotos e tinha descoberto à última da hora, que naquele avião,
havia um equipamento avariado que teria de ser rapidamente substituído.
- Alô
Carvalho - Alô Carvalho... não parava de gritar com todo o fôlego, para
ver se - em última instância - o problema se resolveria e descomprimisse da
pressão que já se avolumava à algum tempo.
Nada disso! Digo para comigo: não há
dúvidas ! Tem que ser substituído!
Comunicação com a torre |
Vai daí, e na altura em que me propunha carregar às costas o equipamento
avariado e trazer pela mesma via o semelhante e em bom estado, que se
encontrava nas oficina de Rádio dentro do Hangar, debaixo daquele mau tempo que
se fazia sentir, quando descia a escada do avião, reparei que alguém deixara
por perto um tractor que servia para o reboque dos ditos aviões e,
pimba! No meu pequenino cérebro parece que se acendeu uma lampadazinha e
se bem o pensei, melhor o fiz. Digo para mim e para o meu boné :
" caíste do céu tractorzinho, pois já tenho o meu problema resolvido
". Peguei no equipamento, pu-lo em cima do tractor e " ala que se faz
tarde ", por ali fora, numa correria desabrida, rumei às instalações da
minha Sessão para efectuar a troca.
Neste ponto tem que se dizer
que, além de não saber conduzir muito bem, (tinha-o feito umas duas ou três
vezes e no continente), não tinha carta de condução e tampouco estaria
autorizado para sequer mexer no tractor, quanto mais
para conduzir com ele...
O trator |
Entrei no hangar numa
velocidade exagerada e provavelmente com alguns salamaleques à
mistura, frutos duma vivacidade e alegria que me eram peculiares naqueles 22
anos de idade. Por aquela hora, já o hangar estava a ficar cheio de
gente do material aéreo, que ia tomando as suas posições em cima dos
aviões que se encontravam para revisão em cima de calços, e com os respectivos
revestimentos dos motores e allairons postos muito " arrumadinhos "
junto à parede lateral do hangar, de forma a serem novamente colocados aquando
do fim das citadas revisões. Aviões suspensos por calços! Carcaças ao lado! Um
abanão e zás! - Nem pensar era bom!
Pois bem, para mal dos meus pecados, descontrolei-me completamente e :
Pum! Trás , Prack! Prerrrrrrrrrr! Poffff! Enfim, os sons todos do
catálogo das desgraças!
Passei por cima daquela coisa toda, para espanto geral dos colegas que estavam
em cima e em baixo dos aviões, e para culminar a tragédia, passei ao lado
de um dos calços, e fui embater com grande estrondo na parede do hangar,
fazendo um buracão, que quase se via a chuva a cair cá dentro!
Mãezinha...! Valha-me Deus !... Uff! Toda a gente me acudiu.
Lembro-me de, na minha ingenuidade, só ter perguntado: - E agora ? - Agora!,
dizia um mais expedito. - Agora estás fodido! Esta foi a primeira vez que senti
que o homem não tinha sido feito completo pelo Criador. Faltaram-me as asas,
que tanto precisava para sair dali...
Completamente atarantado e por sugestão dum colega, fui imediatamente junto de
uma das carrinhas que trazia o pessoal militar da cidade e duma forma mais ou
menos idêntica como o Egas Moniz foi ao rei de Espanha, fui falar com um
Sargento-Ajudante (de quem não me lembro o nome), contei-lhe o sucedido e ele
perguntou-me se os estragos tinham sido grandes.. Umas amolgadelazitas, disse
eu!
Logo que toda a gente ficou a saber do sucedido, Jesus! Maria ! O que praí
vai... - Que reboliço que se gerou naquele hangar!
Toda a gente que falava comigo dava um palpite e alguns tinham mesmo a intenção
de puxar imediatamente a " figurada " corda do Egas ...
Hangar de manutenção |
Chegou o Tenente Capela, meu chefe de Secção, um homem porreiro mas
temperamental que em face do exposto, começou a desatar " biqueiros
" em tudo que mexesse ou não.
Chegou o Sargento-Ajudante Roldão, meu chefe imediato que perdeu a calma que
sempre aparentou ter e " prendeu-me " na oficina para o que desse e
viesse;
Chegou por fim o Capitão Acabado. Bem esse é que quis mesmo acabar
comigo...
Já toda a gente congeminava em grupinhos: - O gajo está fodido! Vai
apanhar 20 dias de prisão disciplinar agravada! Pum! - Morri! Que
tormento, meu Deus, para um jovem de 22 anos que, sem contribuir
deliberadamente para criar todo este imbróglio, se via dum momento para o
outro nos píncaros da desgraça, mau grado ser uma cabeça de alho chocho... Não
sei se encomendei a alma ao Criador, mas ele não aceitou e provavelmente
mandou-ma de volta para ter que pagar por aquilo que fiz! Assim Seja!
Salto alguns pormenores para dizer que uma angústia tão amarga se apossou de
mim, que fiquei daí para a frente num estado absolutamente pungente que nem o
choro convulsivo conseguia resolver o problema. Tinha dado um " nó na alma
" e não sabia mais nada... Fiquei - de imediato - castigado de não poder
sair da Base, enquanto nos dias subsequentes se tratava da minha sorte... Não
comia. Não dormia. Não falava. Não nada... Sentava-me algumas vezes ao sol fora
do hangar, sozinho, talvez... digo agora, a congeminar como pedia "
levantar voo " dali. A verdade manda dizer que o meu chefe, o Tenente
Capela, por tudo isto, já passara a ter por mim alguma complacência e
preocupação e provavelmente também terá contribuído para o desfecho do caso.
Bem - Haja !
Ainda hoje estou desconfiado que, o Criador não terá ficado indiferente ao meu
caso. Talvez duma forma velada mandou-me um Anjo-da-Guarda, que foi quem me
valeu neste problema todo.
Hoje passados quase 40 anos, os meus olhos enchem-se de lágrimas de emoção e
gratidão ao recordar a generosidade e a bondade do homem que resolveu o meu
problema duma forma reservada, sem alaridos e com uma dignidade, que confesso a
quem ficarei eternamente grato. Um homem que soube ver bem a desgraça por que
passou um mancebo desgovernado e quis ser a mão amiga do pai que me faltou na
altura.
Cap. Maia |
Estou a vergar-me em preito de homenagem e saudade ao Sr. Capitão MAIA, comandante
da Esquadrilha de Abastecimento, que com a sua alta hombridade não quis e não
permitiu que aquela " florzinha " fosse esmigalhada. No altar do meu
coração ainda floresce a gratidão à sua memória. Não sei se é vivo ou não! Para
mim está sempre presente.
Do resto, pouco mais há a acrescentar. Serão pormenores que me reservo de
contar por a " noite já ir alta "... Bom, resta dizer que de
facto, o castigo final ficou-se apenas pelos 30 dias de dispensas cortadas. Ora
vejam lá! Por estas coisas todas parece que ainda há Deus!
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