sexta-feira, 31 de outubro de 2014

VIAGEM PARA O AB4

Depois da recruta e da especialidade chegou a hora de rumar até Angola com destino ao AB4. Fiquei colocado na Base Aérea Nº.2 – Ota, onde dei apoio na secretaria do G.I.T.E.
Após os preparativos e os dez dias de férias para as despedidas da família, os beijinhos, abraços e choros dos mais velhos que lembravam a ida para a guerra, recebi a guia de marcha para o AB1 Portela (camarata de adidos onde esperei o dia do embarque). Na espera entre idas a casa da família e farras com a malta que estava na mesma situação, fazíamos alguns passeios pelo Parque Mayer, Bairro Alto, Parque Eduardo VII, Marquês de Pombal, Avenida, lojas da Baixa (Lanalgo), etc. As fardas que usávamos eram as cremes. Estas eram o orgulho dos especialistas e muito apreciadas pelas meninas da altura. Mas passado pouco tempo foram substituídas pelas actuais fardas azuis.

Depois de várias marcações de reserva de embarque e adiamentos lá chegou o dia do embarque. No dia 23 de Janeiro de 1968, pelas nove horas da manhã, entrámos no DC6 da FAP e ordenaram-nos apertar os cintos. Às dez horas levantamos voo (baptismo de voo). Começamos a rolar na pista, o avião vibrava e aquele ronco dos motores parecia o bater das asas de uma grande águia a querer voar.      Quando começamos a flutuar apareceram as primeiras sensações no estômago, aquele vazio, a sensação do primeiro voo. Íamos iniciar a nossa viagem.
Passamos sobre Lisboa com as casas a passarem muito depressa, como que a fugirem dos nossos pés. Ao mesmo tempo que subíamos as casas ficavam cada vez mais pequenas. Da vista espectacular lá do ar destacava-se a Ponte Salazar, hoje chamada Ponte 25 de Abril. Estava com o coração apertado por ser o meu primeiro voo, mas também pela vista deslumbrante. Enfim lá ia eu para o desconhecido, à descoberta de novas terras.
Sobrevoamos a costa portuguesa até ao Algarve e apareceu a costa de África. O deserto à esquerda e no mar alguns barcos que pareciam formigas no meio do oceano. Pelas dezassete horas aterrámos na Guiné para abastecer. O avião ao aproximar-se só se via uma imensidão de árvores e água. A pista era ladeada por árvores, palmeiras e, é claro, por nativos da região que caminhavam pelos trilhos no exterior da vedação do aeroporto. O trem de aterragem baixou e logo tocou no chão, para mim uma novidade as palmas após a boa aterragem, rolámos pista fora até ao estacionamento.
Ao abrirem-se as portas o calor invadiu o interior do avião. Um autêntico forno que nos obrigou a tirar a roupa extra que trazíamos vestida. Quando embarcámos em Lisboa estávamos no Inverno, agora estávamos em pleno coração de África.
Desembarcamos e lá estava a malta da Base à nossa espera para ver a massaricada que ia para Angola. Algumas caras conhecidas da recruta e dos cursos anteriores e até dos tempos de escola que já li estavam a cumprir a sua missão. Depois dos cumprimentos e de saberem para onde íamos, disseram que tínhamos sorte, pois ali era um inferno, muito calor e humidade, para além de alguns bombardeamentos, e nós sem saber o que nos esperava. Depois fomos ao bar dos especialistas beber uma bejeca para refrescarmos a garganta, foi a primeira vez que vi uma cerveja sagres de ½ litro. De seguida despedimo-nos e lá fomos nós rumo a Angola.
Levantámos voo às dezasseis horas da Base Aérea N.º12 Bissalanca (como a malta lhe chamava) ficava para trás, assim como as árvores e as lagoas pantanosas, à medida que íamos subindo no ar.
Rapidamente começou a anoitecer, uns blás blás com os companheiros de viagem e a fome começava a chegar. Não nos deram qualquer comer, nem sequer nos informaram que não o iam dar. O que me valeu foram as sandes que levei, mas que à mesma me souberam a pouco.
Com a continuação do voo começou o frio da noite que àquelas alturas era pior que o que estava em Lisboa quando partimos. Conclusão, toda a roupa que levávamos era pouca. O frio era tanto que não deixava dormir. Os sargentos e oficiais tinham direito a uma manta, mas a cabiçada não tinha direito a nada.
Foi nesta viagem que tive o primeiro contacto com o sargento Relvas, julgo que a sua especialidade era abastecimento. Falou-me um pouco de África, era a segunda ou terceira vez que estava neste continente em comissão. Tentou consolar a minha solidão, estava a sentir-me sozinho e a pensar que ia estar longe da minha família durante dois anos.
Por volta da meia-noite apercebi-me de um burburinho no avião. Um civil, jardineiro das OGMA que ia trabalhar na Base Aérea N.º 9 - Luanda, apercebeu-se de uma chama muito viva (parecia a chama de um maçarico gigante) que saia dos escapes dos motores. A chama tinha cerca de três ou quatro metros. Isto para ele significou que o motor estava a arder. Chamou o assistente de voo. Este ao espreitar pela janela explicou ao homem que aquilo era normal, durante o dia a combustão do motor não é visível devido à claridade, mas à noite a chama produzida tornava-se visível. Confesso que ao espreitar logo à priori fiquei um bocado alarmado com a situação, mas depois da explicação fiquei mais descansado, ao contrário do homem que fez o resto da sua viagem (até Luanda) sem pregar olho. A preocupação desenhada no rosto só desapareceu quando pôs os pés em terra.
Aproximava-se a chegada, eram quase cinco da manhã, o dia já a clarear, a aurora da manhã a despontar no céu muito alaranjado com aquelas cores fortes de África. Começava-se a ver Luanda. O trem de aterragem começou a baixar, os flaps a inclinarem-se e foi dada a ordem de apertar os cintos. A malta toda espreitou pelas escotilhas e fiquei deslumbrado com a baía de Luanda. Sobrevoávamos o mar com a baia à nossa direita. Sobre Luanda destacou-se no meio o edifício BCA. Direitos à pista do aeroporto de Luanda, o toque das rodas do trem na pista e uma bela aterragem (surgiram novamente as palminhas). Desembarcamos e fomos transportados num machimbombo para a Base Aérea N.º 9, onde tomámos o pequeno-almoço. Depois rumámos até ao Comando da Região Aérea para sabermos qual era o nosso destino.
Neste curto espaço de tempo senti-me estranho, nem sei explicar, o cheiro, o odor, o calor, a vegetação...enfim era África, algo mais espectacular do que me tinham contado. Agora via e sentia tudo, era diferente do que tinha imaginado. Até fiquei de boca aberta com aquelas árvores espectaculares, os embondeiros, com um tronco enorme que nunca tinha visto na minha vida, nem sequer imaginado. Diziam que eram necessários nove homens de mãos dadas para o abraçar.
Depois da apresentação das guias de marcha realizou-se a leitura dos destinos. Alguns foram destacados para a BA9 (Luanda), outros para o AB3 (Negage) e outros ainda para o AB4 (Henrique de Carvalho), onde eu estava incluído.
Passado algum tempo surgiram as “bocas” sobre Henrique de Carvalho: “aquilo é um deserto, é o fim do mundo”. Fiquei desanimado, pois Luanda era espectacular. Mas depressa passou a magoa e enquanto esperava pela viagem até o AB4, bebi umas cervejinhas e fiz algumas viagens pela cidade. Entre estas estava a ida ao BO (Bairro Operário) feita para conhecer aquelas lides e que era uma praxe.
Após quase uma semana surgiu a viagem para Henrique de Carvalho. Às sete da manhã estava no hangar à espera do embarque, com a minha mala de cartão. O cabo dos transportes fez a chamada para o embarque e lá fomos nós para o avião (um NordAtlas). Sentámo-nos nos bancos de lona dispostos ao longo da fuselagem e no meio encontrava-se a carga que ia abastecer a base e quartéis do exército. O barulho dos motores era ensurdecedor, tudo vibrava, o avião abanicava de um lado para o outro e saltitava pista fora, enquanto que nós estávamos caladinhos. Pensei “será que isto levanta voo”, era uma nova sensação.
Lá conseguiu subir até aos céus, a vista sobre Luanda era oposta à do voo anterior. Agora víamos os bairros mais pobres e os mosseques nos arredores da cidade. Ganhámos a altura de cruzeiro e viu-se a neblina serrada das manhãs africanas (um manto branco). Por vezes o avião estremecia com a turbulência de um poço de ar e o meu estômago parecia saltar. Alguém que não aguentava esta agitação fazia saltar a carga ao mar, como se costuma dizer, e de seguida aquele cheiro empestava o avião e incomodava os restantes passageiros.
Passado algum tempo começou-se a ver lá ao fundo o arvoredo e o serpentear dos rios com curvas e contra curvas rodopiando pelo meio da selva. Após duas horas e meia estávamos com Henrique de Carvalho à vista, surgindo as espreitadelas pelas pequenas janelas circulares. Víamos a cidade, as sanzalas com milhares de cubatas e a pista envolvida pelo arvoredo. Mais próximos do chão, observei o capim com alguns metros de altura, aquilo para mim era erva-gigante.
Estávamos no AB4 com o carro dos bombeiros a acompanhar o avião até ao estacionamento. A malta da base encontrava-se numa grande euforia ao ver chegar o Nord com os maçaricos, o correio, os aerogramas e as novidades da metrópole.
Lá estava eu no AB4 só e desolado, sem saber o que pensar, de facto era um ermo no meio da savana.
  
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