sexta-feira, 24 de outubro de 2014

HISTÓRIA VIVIDA - AB4 1968

A minha especialidade era Mecânico de Rádio. Nesse tempo (creio que no ano de 1968) os mecânicos de rádio estavam subordinados a uma escala de serviço para prestar serviços na Unidade - aliás, o que acontecia em todas as outras especialidades  -  e num desses  famigerados serviços que me calhara em sorte, era um  mais ou menos assim chamado : Mecânico de Rádio à Linha da Frente.
Linha da frente
Dentre as várias tarefas que tinha que desempenhar,  a mais rotineira e importante, era efectuar logo de manhã, por volta das 7,30 horas, um teste de rádio com a Torre de Controlo, de todos os aviões que estavam no táxi-way já aprontados para partirem, que  só esperavam a chegada dos pilotos vindos da cidade de Henrique de Carvalho onde quase todos residiam.
Naquela fatídica manhã de um dia cinzento e chuvoso, fazia um frio de rachar, e lembro-me de estar todo enrolado num casaco de cabedal com gola de pele de coelho que nos tinha sido distribuído, mas mesmo assim tinha as mãos enregeladas e pecas. - Alô Carvalho, - alô Carvalho ... gritava eu com todas as forças de dentro da cabina do T6, aflito porque já estava em cima da hora da chegada dos pilotos e tinha descoberto à última da hora, que naquele avião, havia um equipamento avariado que teria de ser rapidamente substituído. 
- Alô Carvalho - Alô  Carvalho... não parava de gritar com todo o fôlego, para ver se - em última instância - o problema se resolveria e descomprimisse da pressão que já se avolumava à algum tempo. 
Nada disso! Digo para comigo: não há dúvidas ! Tem que ser substituído!
Comunicação com a torre
Vai daí, e na  altura em que me propunha carregar às costas o equipamento avariado e trazer pela mesma via o semelhante e em bom estado, que se encontrava nas oficina de Rádio dentro do Hangar, debaixo daquele mau tempo que se fazia sentir, quando descia a escada do avião, reparei que alguém deixara por perto   um tractor que servia para o reboque dos ditos aviões e, pimba! No meu pequenino cérebro parece que se acendeu uma lampadazinha e  se bem o pensei, melhor o fiz. Digo para mim e para o meu boné :  " caíste do céu tractorzinho, pois já tenho o meu problema resolvido ". Peguei no equipamento, pu-lo em cima do tractor e " ala que se faz tarde ", por ali fora, numa correria desabrida, rumei às instalações da minha Sessão para efectuar a troca.
Neste ponto tem que se dizer que, além de não saber conduzir muito bem, (tinha-o feito umas duas ou três vezes e no continente), não tinha carta de condução e tampouco estaria autorizado  para sequer mexer no tractor,  quanto mais para conduzir com ele...
O trator
Entrei no hangar numa velocidade exagerada  e provavelmente com alguns salamaleques à mistura, frutos duma vivacidade e alegria que me eram peculiares naqueles 22 anos de idade. Por aquela  hora, já o hangar estava a ficar cheio de gente do material aéreo, que ia  tomando as suas posições em cima dos aviões que se encontravam para revisão em cima de calços, e com os respectivos revestimentos dos motores e allairons postos muito " arrumadinhos " junto à parede lateral do hangar, de forma a serem novamente colocados aquando do fim das citadas revisões. Aviões suspensos por calços! Carcaças ao lado! Um abanão e zás! - Nem pensar era bom!
Pois bem, para mal dos meus pecados, descontrolei-me completamente e : Pum! Trás , Prack! Prerrrrrrrrrr! Poffff!   Enfim, os sons todos do catálogo das desgraças!
Passei por cima daquela coisa toda, para espanto geral dos colegas que estavam em cima e em baixo dos aviões,  e para culminar a tragédia, passei ao lado de um dos calços, e fui embater com grande estrondo na parede do hangar, fazendo um buracão, que quase se via a chuva a cair cá dentro!
Mãezinha...! Valha-me Deus !...  Uff! Toda a gente me acudiu. Lembro-me de, na minha ingenuidade, só ter perguntado: - E agora ? - Agora!,  dizia um mais expedito. - Agora estás fodido! Esta foi a primeira vez que senti que o homem não tinha sido feito completo pelo Criador. Faltaram-me as asas, que tanto precisava para sair dali...
Completamente atarantado e por sugestão dum colega, fui imediatamente junto de uma das carrinhas que trazia o pessoal militar da cidade e duma forma mais ou menos idêntica como o Egas Moniz foi ao rei de Espanha, fui falar com um Sargento-Ajudante (de quem não me lembro o nome), contei-lhe o sucedido e ele perguntou-me se os estragos tinham sido grandes.. Umas amolgadelazitas, disse eu!
Logo que toda a gente ficou a saber do sucedido, Jesus! Maria ! O que praí vai... - Que reboliço que se gerou naquele hangar!
Toda a gente que falava comigo dava um palpite e alguns tinham mesmo a intenção de puxar imediatamente a " figurada " corda do Egas ...
Hangar de manutenção
Chegou o Tenente Capela, meu chefe de Secção, um homem porreiro mas temperamental que em face do exposto, começou a desatar " biqueiros "  em tudo que mexesse ou não.
Chegou o Sargento-Ajudante Roldão, meu chefe imediato que perdeu a calma que sempre aparentou ter e " prendeu-me " na oficina para o que desse e viesse;
Chegou por fim o Capitão Acabado. Bem esse é que quis mesmo acabar comigo...
Já toda a gente congeminava  em grupinhos: - O gajo está fodido! Vai apanhar 20 dias de prisão disciplinar agravada! Pum! - Morri! Que tormento, meu Deus, para um jovem de 22 anos que, sem contribuir deliberadamente para criar todo este imbróglio, se via dum momento para o outro nos píncaros da desgraça, mau grado ser uma cabeça de alho chocho... Não sei se encomendei a alma ao Criador, mas ele não aceitou e provavelmente mandou-ma de volta para ter que pagar por aquilo que fiz! Assim Seja!
Salto alguns pormenores para dizer que uma angústia tão amarga se apossou de mim, que fiquei daí para a frente num estado absolutamente pungente que nem o choro convulsivo conseguia resolver o problema. Tinha dado um " nó na alma " e não sabia mais nada... Fiquei - de imediato - castigado de não poder sair da Base, enquanto nos dias subsequentes se tratava da minha sorte... Não comia. Não dormia. Não falava. Não nada... Sentava-me algumas vezes ao sol fora do hangar, sozinho, talvez... digo agora, a congeminar como pedia " levantar voo " dali. A verdade manda dizer que o meu chefe, o Tenente Capela, por tudo isto,  já passara a ter por mim alguma complacência e preocupação e provavelmente também terá contribuído para o desfecho do caso. Bem - Haja !  
Ainda hoje estou desconfiado que, o Criador não terá ficado indiferente ao meu caso. Talvez duma forma velada mandou-me um Anjo-da-Guarda, que foi quem me valeu neste problema todo.  
Hoje passados quase 40 anos, os meus olhos enchem-se de lágrimas de emoção e gratidão ao recordar a generosidade e a bondade do homem que resolveu o meu problema duma forma reservada, sem alaridos e com uma dignidade, que confesso a quem ficarei eternamente grato. Um homem que soube ver bem a desgraça por que passou um mancebo desgovernado e quis ser a mão amiga do pai que me faltou na altura.
Cap. Maia
Estou a vergar-me em preito de homenagem e saudade ao Sr. Capitão MAIA, comandante da Esquadrilha de Abastecimento, que com a sua alta hombridade não quis e não permitiu que aquela " florzinha " fosse esmigalhada. No altar do meu coração ainda floresce a gratidão à sua memória. Não sei se é vivo ou não! Para mim está sempre presente.
Do resto, pouco mais há a acrescentar. Serão pormenores que me reservo de contar por a " noite já ir alta "... Bom, resta dizer que de facto, o castigo final ficou-se apenas pelos 30 dias de dispensas cortadas. Ora vejam lá! Por estas coisas todas parece que ainda há Deus!

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