sábado, 17 de março de 2012

A AVÓ DO CABO DINIS - Parte III

Conclusão
Talvez tenha sido essa angústia fria e deprimente, provocada pela incerteza que se apodera de um piloto ao comando do seu avião nos momentos em que a decisão a tomar pode conduzir a uma situação irreversível, que nos levou a apontar o nariz do avião para o buraco que se nos afigurava como uma eventual passagem na muralha que a tempestade formara.
Voávamos agora em plena intempérie, numa turbulência que, apesar da experiência que ambos possuíamos, nos levava a admitir que o avião poderia não aguentar! A bússola oscilava com grandes amplitudes, atraída pelos "cúmulo-nimbos" que mais perto estivessem! Os comandos do avião, que ambos segurávamos, saltavam-nos das mãos, tal era a força dos golpes para baixo e para cima que nas asas os "ailerons" sofriam!
Dada a situação, decidimos, a partir da posição estimada em que calculávamos estar, traçar o rumo para Luanda e segui-lo sem alterações, fossem quais fossem os obstáculos que estivessem na nossa frente. E foi assim, após mais uns trinta minutos de voo tormentoso, que por baixo de nós avistámos de relance as luzes de uma povoação que, pela dispersão, só poderiam ser as da cidade de Malange ou de Salazar, a actual Dalatando.
Com a luz da lanterna de bolso que trazíamos sempre no fato de voo iluminámos a carta de navegação, medindo as distâncias de uma e outra povoação a Luanda. Concluímos que, caso estivéssemos a sobrevoar Malange, o combustível já não daria para chegar a Luanda; se as luzes fossem as de Salazar, havia a hipótese de aterrar, mas com a gasolina abaixo dos mínimos!
Continuámos o voo preparando-nos para o pior, mas mantendo a esperança de que as luzes avistadas fossem as da actual Dalatando.
Foi com uma crescente sensação de alívio que fomos verificando que o temporal tinha tendência para suavizar, à medida em que deixávamos de sobrevoar a zona montanhosa do planalto para entrar na longa faixa plana que leva ao litoral. Como os motores continuavam a trabalhar num "ronronar" sadio, esperávamos a qualquer momento vislumbrar, através da neblina que se formara junto ao solo, as luzes da cidade e com elas as da pista que sabíamos estar iluminada.
As ajudas rádio à navegação, que durante a travessia da tempestade de nada nos tinham servido, começaram subitamente a dar indicações e ouvíamos agora a torre de controlo de Luanda tentando entrar em contacto connosco, chamando-nos pela matrícula do avião!
O Martins Rodrigues, carinhosamente apelidado de "Martin" desde os tempos de cadete na Academia Militar, era o oficial de dia ao aeródromo.
Como o nosso tempo estimado de voo fora ultrapassado há muito, ele alertara a torre de controlo para a possibilidade de nos termos despenhado algures entre o Luso e Luanda, num percurso que tornaria uma busca muito difícil de efectuar por ter que ser feita ao longo de cerca de mil e quinhentos quilómetros!
A voz do controlador alegrou-se ao ouvir que respondíamos à sua chamada.
Quando nos perguntou o novo tempo estimado de aterragem, o Cóias calmamente informou-o de que seria dentro de quinze minutos!
Perante a minha perplexidade pela informação prestada, pois ainda não vislumbrávamos a pista, nem a rádio-bússola nos dava indicações precisas sobre a nossa posição, olhando para mim, atirou-me através do intercomunicador:
- Oh pá, quinze minutos é o tempo que temos para voar! Não há gasolina para mais e... ou aterramos lá ou somos forçados a aterrar de "papo" em qualquer outro lado! Dentro de quinze minutos estamos aterrados de certeza!
Pedimos prioridade na aterragem e autorização para uma aproximação directa à pista de serviço.   Reduzimos o regime dos motores iniciando uma descida em direcção à faixa que ainda não víamos, orientados apenas pelas indicações que a agulha da rádio bússola nos ia dando, mas foi com uma enorme sensação de alívio que vimos aparecer, como flores nascidas dentro de uma ligeira neblina que as ofuscava, as luzes alinhadas e acolhedoras da faixa onde finalmente poderíamos aterrar!
Calculámos a fase final do voo um pouco altos em relação ao início da pista, pois tínhamos receio de que, durante uma aproximação normal, se os motores parassem, não tivéssemos possibilidades de lhe alcançar a cabeceira!
Rolávamos em direcção ao estacionamento, depois de uma aterragem, apesar de tudo, boa, quando o motor direito parou! No depósito de combustível que o alimentava, o precioso líquido esgotara-se por completo! Quanto ao motor esquerdo, já com o avião tranquilamente estacionado na placa, para o desligar ainda foi preciso fazer o procedimento normal, puxando a "manete" da mistura atrás! Deixou de trabalhar suavemente, com aquele som tão característico do ressalto dos magnetos acompanhando as rotações do hélice, que ainda hoje,
quando de vez em quando os meus ouvidos o captam, me inunda a alma de uma ternura imensa, como se, vindas do passado, me chegassem brisas de uma juventude vivida intensamente ao ritmo dos motores daquelas maravilhosas máquinas!
O voo terminara! Os nossos dois camaradas, tão gravemente feridos, estavam agora entregues a mãos que os poderiam salvar!
Estávamos já instalados na viatura que o Martin disponibilizara para nos conduzir à messe, perguntando com amizade se precisávamos de mais alguma coisa, quando o Cóias se chegou para o meu lado do assento do carro e, inclinado para mim, em voz baixa talvez para o condutor não ouvir o desabafo, perguntou:
- Tu achas que manter aquele avião a voar para além de todos os limites para que foi concebido pode ter sido só obra nossa? - Olhei-o surpreendido!
- Deus esta noite viajou connosco! Nós não voámos sustentados apenas pelas asas do avião e pela tracção dos hélices! Fomos trazidos até aqui, cumprindo a nossa missão, pela mão infinita do Senhor que nos amparou! - Concluiu com emoção, descarregando a adrenalina acumulada durante mais de três horas muito difíceis de passar...
- Na verdade, isto foi um voo milagroso! - Concordei - Até hoje, nunca tinha voado com tão más condições! - Confessei, retribuindo a confidência àquele meu velho camarada e amigo, companheiro de tantas horas boas e más, que eu sabia ser pouco dado tanto a meditações metafísicas como a manifestações de fé!
A avó do cabo Diniz deve ter sido informada do ocorrido pelo serviço de relações públicas da Força Aérea e, como mulher corajosa que era, desembarcou no aeroporto de Luanda poucos dias depois, disposta a ajudar o neto na recuperação que, estava segura, seria inevitável!
BA9
Instalou-se numa pensão perto do hospital militar cujo director foi convencido a conceder-lhe prerrogativas que lhe davam o direito de permanecer junto do neto e do outro camarada ferido, no quarto da secção de queimados onde estavam instalados, praticamente as vinte e quatro horas do dia!
Ajudava com grande coragem as enfermeiras a mudar-lhes os pensos e a limpar as feridas que os enxertos de pele, quando rejeitados, deixavam em aberto. Acompanhava nas vigílias nocturnas as enfermeiras que viam já nela uma auxiliar preciosa. Apesar da idade que tinha, possuía uma energia inesgotável e uma esperança sem limite na recuperação do seu ente querido!
Apesar de tanta esperança e de tudo ter sido tentado, o cabo Diniz, uma madrugada, um mês depois de ter chegado ao hospital em sofrimento, morreu!
Numa posterior deslocação a Luanda, fui ao hospital militar visitar o outro ferido que, apesar de muito deformado pelos enxertos de pele e pelas cicatrizes, ia recuperando e aguardava já a evacuação para a metrópole. Tentei saber, junto de uma das enfermeiras que tinham assistido o cabo Diniz, como reagira aquela avó a tamanha dor.
- Foi impressionante a dignidade com que dominou a angústia e o sofrimento que certamente a inundou! - Respondeu-me. - Nós, para quem a morte é uma presença constante e o sofrimento dos outros é parte do nosso dia a dia, ficámos sensibilizadas com a serenidade profunda com que aquela mulher acompanhou a agonia e o fim da vida do seu neto!
Foi ela quem se apercebeu de que ele, naquela noite, entrou no estado moribundo que antecede a morte!    Foi ela que o amparou, erguendo um pouco a cabeça do seu menino, sabendo que nada mais havia a fazer.    No meio de tão grande aflição e dor, como na cama ao lado o outro ferido em delírio chamasse pela mãe, aquela avó, depondo de novo a cabeça já sem vida do neto na almofada, arranjou forças para estender a mão e, procurando na penumbra do quarto a mão do companheiro de infortúnio do seu menino, sussurrou-lhe, sustendo as lágrimas, reprimindo a dor e o desgosto, com a doçura de que só uma mãe ou uma avó são capazes:
- Estou aqui, meu filho! Descansa, vê se dormes enquanto eu velo por ti!
No outro dia, de regresso à nossa Base, enquanto o avião sulcava tranquilamente um caminho limpo de nuvens, com o horizonte visível até ao infinito e o Sol arrancando alegres reflexos de luz à água dos rios que corriam lá em baixo dando cor à paisagem maravilhosa daquele rincão de África, dei por mim a meditar sobre aquela velha senhora que tomara lugar no nosso
subconsciente através da carta que escrevera ao comandante e da vida breve que o seu neto desfrutara na nossa companhia!
Nenhum de nós, os que mais directamente tinham acompanhado aquele drama, tivera a oportunidade de a conhecer!
Talvez por isso ela pairava, etérea, no nosso imaginário! Todos lhe desenhávamos um retrato psicológico, traçando-lhe um perfil, tanto austero pela sua determinação, como meigo pela sua resignação perante tamanha dor, adivinhando-lhe a personalidade forte que lhe sustentava a luta frente aos reveses da vida, imaginando-a cada um à sua maneira, talvez decalcando nela
o retrato da sua própria mãe!
Aquela avó que tão tragicamente nos surgira vinda de um pacífico recanto de Portugal como a vila de Cucujães, transfigurara-se subitamente num ente que encarnava muito mais do que uma avó de um certo cabo Diniz!
Ela instalara-se nas nossas consciências e nas nossas memórias de soldados curtidos no sacrifício do dia-a-dia de uma guerra, muito simplesmente porque trazia em si, como uma cruz carregada ao longo de um calvário imenso, o sofrimento de todas as mulheres deste Portugal que, há séculos, num ritual trágico, são despertadas uma madrugada com a notícia de que os seus homens, maridos, filhos e netos morreram lá longe, muito longe, na defesa de uma daquelas fronteiras com que Portugal se estendeu pelo mundo!

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